Simulacro da história

Uma foto correndo pelo Facebook: Imagem

Quem viu os filmes da marca “De volta para o Futuro” vai se lembrar – este é o painel do DeLorean voador. A data correta é 2015, e não 2012. Eles estão em 1985 – volta 30 anos pra 1955, adianta outros 30 pra 2015. Mas o que interessa é a imagem. A frase “where we’re going we don’t need roads” do começo do filme 2 é de Ronald Reagan, referindo-se à década de 1950. Simulacro e espetáculo, a velha maneira Hollywood de re-contar a história como convém a um WASP – o máximo da simulação e da tentativa de confundir simulacro e real é a história muito ordinária de que na verdade os brancos inventaram o Rock nos E.U.A. – os negros aprenderam a tocar rock com os brancos, isso é o que o filme diz, uma barbaridade sem tamanho. Assim, como Rocky, o lutador, que ganha a luta no ringue de boxe do campeão negro. No pós-moderno estadunidense, a diferença é abolida, a identidade branca é que fez a história. Uma forma de reapropriação e reconstrução da memória muito peculiar. Por enquanto “that’s all folks”.

A mulher faz o artista, o cinema agradece

Cordiais saudações:

O texto que segue foi publicado no Correio da Cidadania em 10 de março do ano corrente [http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6902]. Faço algumas considerações a mais no final; está publicado aqui tal e qual o fora pela primeira vez em março, acrescentado de uma única correção e das imagens e enlaces para os videos. Obrigado pela visita e boa leitura.

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À Dri.

 

“Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera
Ser o verão no apogeu da primavera
E só por ela ser”.


Por que fazer um filme sobre cinema mudo? Por que, agora, mais de 100 anos de cinema, voltar ao começo do cinema para falar do cinema? Essas podem ser as duas questões mais óbvias a alguém que se interesse pelo mais recente ganhador do Oscar de melhor filme, O Artista (The Artist, dir. Michel Hazanavicius, França/EUA, 2011). Este escritor que assina este pequeno ensaio não sabe se tem respostas satisfatórias para as perguntas. O que tentarei aqui é mais pensar o filme de uma perspectiva feminina do que tentar respondê-las.

Desde o início, fique claro: no filme, é a mulher quem dá ao herói a chave para que se reinvente. O herói é George Valentin (Jean Dujardin, também ganhador do Oscar de melhor ator principal por este papel), astro do cinema mudo, típico herói masculino daqueles filmes d’antanho: mocinho, um tanto cínico, vence sempre os bandidos e no fim fica com a mocinha. Não por acaso, chamasse Rodolfo…

Logo de início, o filme o mostra a olhar por trás da grande tela para suas imagens projetadas – um espectador às avessas, que olha para a imagem de uma perspectiva vedada aos outros espectadores. E diferentemente dos outros, olha para as próprias imagens. Ao término do filme, como de costume antigamente, ele vai à frente do palco (ainda antes da invenção da rampa que ligava, nos antigos teatros transformados em salas de exibição cinematográfica, a platéia à tela; lembremos de Serge Daney) e concede um mimo ao público: dança, sapateia, faz gracejos. E, para irritação da atriz do filme, chama seu cão, companheiro inseparável de todos os filmes, antes de chamá-la a receber os aplausos.

O espectador às avessas

Valentin tem uma imensa mansão, um imenso quadro seu, grande astro do cinema, pendurado na parede, tem dinheiro, tem fama, um casamento em crise e a certeza de que é maior do que realmente é. Ao se defrontar com “o futuro” representado pelo som no cinema, ele arrogantemente desdenha a novidade: “As pessoas vão ao cinema para me ver, cinema falado é uma novidade vulgar”. Nesse ponto, o filme nada traz de novo: com a chegada do cinema falado, os velhos astros do cinema mudo perderam lugar. Basta lembrarmos Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, EUA, 1950), de Billy Wilder. Mas é nesse momento que o filme deixa de ser óbvio.

O ocaso de Valentin é mostrado simultaneamente à ascensão de Peppy Miller (Bérénice Bejo). Jovem fã de Valentin, eles se trombam, literalmente, já no início do filme. Nessa primeira seqüência do encontro, ela já o tira do lugar, dá-lhe um empurrão, desequilibra-o, como a dar a tônica do que será a relação de ambos durante o restante do filme. Esse encontro rende uma manchete de jornal e o início de uma carreira a ela. Logo depois, eles novamente se encontram por acaso, no estúdio, ela, jovem figurante, ele, astro consagrado. Ele a defende, e ajuda-a a manter seu trabalho e começar a carreira. Posteriormente, ele a lembrará disso, quando já estiver em decadência e ela em franca ascensão cinematográfica.

A maneira como o filme apresenta a ascensão de uma e a queda do outro é que nos parece feminina: enquanto ele insiste em se identificar com a imagem de herói das suas personagens nos filmes, o tempo todo olhando para si mesmo ao olhar para o quadro, para os espelhos ou para as telas, ela, em momento algum do filme, precisa de uma imagem para saber de si. Isso marca uma distância entre quem ela é e quais as personagens que representa nas telas. Ao contrário de Valentin, Peppy Miller sabe distanciar-se da imagem que o espetáculo cria para ela, e não teme fazer uso de seus atributos femininos para se posicionar e atingir seus objetivos, sem, no entanto, fazer disso uma bandeira de guerra.

O artista, 2011

O artista, 1875

Essa caracterização das personagens não é fortuita. O filme todo trabalha com os clichês do cinema mudo, como se a brincar com a semântica das imagens. As personagens seguem os clichês exatamente quando e como a câmera os mostra: o cão sempre finge de morto ao gesto que imita o revólver, tal como treinado para fazer nas filmagens, Valentin sempre age como o herói que interpreta nos filmes – e isso é o que nos permite dizer que ele não consegue se ver fora de uma imagem que lhe é imposta pelo espetáculo. Ele, ao contrário dela, não é senhor de sua imagem – se o espetáculo, como dizia Guy Debord, é uma relação social mediada  por imagens, no caso de Valentin é mais: sua consciência de si é mediada pelas imagens, ele não consegue escapar das imagens para se auto-definir –, assim, não consegue se apropriar do capital simbólico, não consegue fazê-lo render em seu favor e transformá-lo em capital real.

Dos vários filmes dentro do filme, aquele que Valentin produz e dirige aparece como signo de sua bancarrota inevitável. Na seqüência final, ele afundando em areia movediça em frente a seu fiel cão, diz à mocinha: “Querida, desculpe-me, nunca te amei”. Sem ter consciência de seu valor como signo, ele se deixa engolir pelo buraco sem fundo da circulação das imagens, o giro em falso da indústria do entretenimento espetacular. Maior clichê, impossível.

A quebra dos clichês é efetuada por Peppy Miller: ela é quem propõe a Valentin uma saída do fosso em que se meteu. Sem querer aqui estragar o final do filme, basta dizer que é ela quem lhe mostra como usar melhor sua própria imagem – algo que ela faz naturalmente.

Ao resgatá-lo do ostracismo, ela lhe propõe que use seus talentos de outra maneira: que dance e sapateie, mas não como antes; que fale, mas agora nos filmes; e que deixe a mulher falar, não após, não sob, mas simultaneamente e ao seu lado. É uma ótima sugestão do filme que a mocinha d’antanho seja muda e sirva sempre de esteio ao herói masculino tradicional; a mocinha “do futuro”, ao contrário, não aparece ligada ao cinema mudo, ela fala, ela está ao lado do homem, é seu duplo e seu igual, não é mera imagem muda no espelho ou na tela. Com ela, nasce o novo cinema dos musicais, no qual o corpo ganha preeminência, a dança como parceria e não a ação racional do macho-herói.

Em O Artista, a mulher é o motor da história, e mais: todas as renovações para melhor são devidas a Peppy Miller, sem que ela fique marcada pelo olhar estereotipado masculino. Não podemos deixar de observar: há sempre uma tensão sexual entre Valentin e Peppy Miller, mas o filme em momento algum cede ao clichê de um explícito caso amoroso entre os dois. Muito mais razoável parece ser a sugestão de uma amizade sincera e apimentada. Talvez essa recusa do clichê óbvio nos permita uma interpretação mais metaforizada do uso que o filme faz dos outros clichês cinematográficos? De herói construído pelas imagens do cinema mudo, George Valentin se torna, por intervenção da Peppy Miller, um super-homem da canção de Gilberto Gil.

Fazer novos usos de antigos e quase despercebidos meios de expressão. A arte pode não salvar o mundo, mas o artista pode tomar a si papéis e funções antes inconcebíveis e intervir para mudar um contexto, um papel, um lugar ou um olhar, um gênero, a si mesmo e aos outros. Renovando-se a si mesmo, renova o mundo ao seu redor.

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O filme não está mais em cartaz no circuito comercial normal, mas acabou de ser lançado em DVD. Alguns videos e fotos podem ser vistos http://www.imdb.com/title/tt1655442/

Há que se ressalvar que vários aspectos do filme não são contemplados. A curiosa discrepância da trilha sonora, por exemplo: uma trilha sonora que lembra os filmes da década de 1950, para toda a ação decorrer no começo dos anos de 1920. Além disso, alguns amigos me fizeram lembrar que Cantando na Chuva  (Singin’ in the Rain, dir. Stanley Donnen, E.U.A. 1952) já tinha proposto – melhor – praticamente tudo que O Artista expressa. Eu humildemente discordo. É certo que o clássico de Stanley Donnen parece mais harmonioso com relação à autoreferencialidade, à função poética propriamente de suas imagens – suas imagens remetem a si mesmas e bastam-se a si mesmas, de uma maneira que O Artista não faz. Veja-se, por exemplo, a cena romântica entre Gene Kelly e Debbie Reynolds e logo pensamos: “coisas que só no cinema…”

 Nada mais natural. O filme de Stanley Donnen é de 1952, auge do “cinemão” de entretenimento de Hollywood, a experiência social do cinema em dimensões irrecuperáveis atualmente, o pós-guerra e a dicotomia da guerra fria, a indústria cultural a toda força produzindo e exportando as imagens made in U.S.A. a todo lugar do mundo que conseguir etc. etc…. Hoje, no nosso mundo espetacularizado ao extremo, nada mais natural as imagens de O Artista parecerem nostálgicas – o filme exprimir certo receio (de alguém, de uma época, certamente não da obra), certo temor relativamente a ser signo e insistir um pouco demais na indexicalidade, na referência semântica a um objeto externo.

 Devo confessar que sinceramente não sei se entendi o que isso quer dizer. A pergunta que me fiz ao término do filme foi: por que, hoje, voltar ao início do cinema, este respeitável Matusalém de mais de 100 anos? Qual o interesse para nós, hoje, de recontar a história da passagem do cinema mudo ao cinema falado? É na resposta a essas perguntas que vejo a diferença com Cantando na Chuva. Neste, o papel da mulher é decisivo, mas não é gerador; antes, que eu me lembre sem uma re-visão recente, parece que há uma ação conjunta entre homens e mulheres sem que haja predomínio de gênero.

Talvez essa ideia seja até melhor; ou talvez demonstre indulgência exagerada com a narrativa desse “classicão”. Mas até o cartaz do filme traz Gene Kelly, Debbie Reynolds e Donald O’Connor juntos, no mesmo plano, lado a lado. Outra coisa que me foi alertada: ao final, é uma pena a re-significação das personagens em O Artista não ultrapassar os marcos mercadológicos da imagem como produto. Sim, de fato, as personagens, no fim, encontram novo sentido para suas vidas ainda como atores contratados por um estúdio que vai vender imagens-produtos para a massa; de certa forma, não encontram novo sentido algum, mas somente dão novo uso a um velho sentido, fazem uma “repaginação” de um antigo produto. Ora, não se trata de um filme de Sergio Bianchi; e, além disso, quando é que o cinema não foi uma indústria? Um câncer perene do cinema brasileiro sempre foi recusar a dimensão comercial do processo cinematográfico: sempre produzir sem pensar em como divulgar o produto, pensando pouquíssimo  em estratégias de venda dos filmes.

Em princípio, não vejo, em O Artista, problema algum em um ator de cinema remodelar-se como produto. Isso não significa que ele se reduza ao que sua imagem-produto mostra dele mesmo, e essa me parece ser a mensagem trazida por Peppy Miller. As consequências ruins dessa separação entre imagem e vida vemos bem em Crepúsculo dos Deuses de Billy Wilder. Temas a serem discutidos em outros textos.