O teorema de Kubrick-Clarke: o que podemos frente aos algoritmos?

Cordiais saudações de ano novo!

O texto a seguir foi publicado no Correio da Cidadania ontem, 13/01/2019. Segue aqui também, exceto pelo título sem demais modificações, no embalo do começo de ano.

Boa leitura!

2001-a-space-odyssey

2001: uma odisseia no espaço (E.U.A./R.U.) fez 50 anos de lançamento em 2018. 2001 não é só o maior filme de ficção científica já feito. Não é só um dos maiores filmes da história. 2001 é um marco cultural da contemporaneidade, um verdadeiro porto seguro aonde desembocam inúmeras inquietações da nossa época. São tão impactantes as suas imagens que é impossível contar as inúmeras citações a 2001 no caldo indistinto da cultura geral, incluindo paródias e pastiches os mais infames e, mais recentemente, inclusive video-games.Por isso, é muito maior do que qualquer interpretação, e incontáveis já foram feitas, na tentativa de explicar o filme. É mesmo uma baita arrogância dizer: vejam só, ó ingênuos espectadores, eis aqui o gabarito que explica tudo o que vocês viram mas não entenderam. Pela mesma razão, sempre nos obrigará a reinterpretá-lo, de modo a nunca esgotarmos seus sentidos. Isso significa que devemos desistir de interpretar o filme? Claro que não. É exatamente por isso que devemos tentar interpretá-lo bem, isto é, especular sobre suas sugestões a partir de seus próprios elementos e recusar especulações que tentem impor um sentido ao filme.

Como todo filme, 2001 traz referências culturais específicas. A primeira está já no título, a Odisseia de Homero. Veremos então uma epopeia, um grande poema épico cinematográfico. Imediatamente, algumas perguntas são feitas: se é uma odisseia, quem é Ulysses? A qual Ítaca retorna? Por quais mares? Para reencontrar qual Penélope? Como veremos, é uma viagem não propriamente de retorno, mas de descoberta, para responder àquela que talvez seja a pergunta mais fundamental: quem sou? Melhor: quem somos? O filme, assim, aparece como uma narrativa mitológica sobre a vida e a morte no cosmos, uma viagem por espaços nunca dantes vislumbrados e sobre o sentido da história humana. Não devemos menosprezar o talento de Arthur C. Clarke na elaboração desse roteiro.

stewardess-walk-759

Outra crucial chave de compreensão é a música. Pelo estranhamento, a música contribui decisivamente para um dos aspectos mais surpreendentes do filme, que é sua capacidade de fazer travessuras com nossa percepção usual. Já se falou que 2001 é uma sinfonia para os olhos, e, de fato, o som contribui muito para isso. Stanley Kubrick, em entrevista à Playboy em 1968, dizia: “Tentei criar uma experiência visual que ultrapassa a categorização verbal e penetra diretamente o subconsciente com um conteúdo emocional e filosófico”. Se ele conseguiu realizar o que queria é discutível, mas, de toda forma, é impossível ficar indiferente à experiência cinematográfica de apenas 43 minutos falados em 138 totais de filme. No entanto, e lembrando mais uma vez de Clarke, a banalidade das falas é calculadamente desconcertante. A personagem principal, o astronauta Dave Bowman (Keir Dullea), por exemplo, jamais retorna os contatos vindos da Terra, restringindo-se a mensagens ocasionais com as bases militares e pouquíssimas mensagens trocadas com a família. Essas, aliás, mostram-no apático, contrastando com a efusiva emotividade dos familiares — um sinal de seu distanciamento psicológico e não apenas físico do nosso mundo? A escassez de palavras, porém, não significa a obliteração do som em nome da imagem, ao contrário: a música assume um papel fundamental, seja na indicação de outras referências culturais, seja para encadear a própria narrativa. A referência mais óbvia é dada pelo tema de Richard Strauss — que se tornou praticamente inseparável de 2001 — ao livro homônimo de Nietzsche, Assim falou Zaratustra. Mas, antes disso, o espectador ouve a composição Atmosferas de György Ligeti enquanto vê apenas uma tela preta, antes mesmo dos créditos do estúdio aparecerem. A história começa aí: aparentemente caótica, a combinação de tonalidades e texturas musicais com a tela preta reforçam a sensação de atemporalidade e pura possibilidade — o que esperar do caos? Ou do nada? O que estamos por ver? É dessa indeterminação que 2001 tira sua força: todas as possibilidades estão abertas.

Só depois desse enigmático início vemos e ouvimos algo definido. Quando a pentatônica em Dó maior — o tom universal — se faz ouvir, o caos passou e 2001 passa a seguir os estágios de desenvolvimento da humanidade segundo o Zaratustra de Nietzsche. Para aquele que não se acha pobre o bastante para dar esmolas, a evolução da humanidade passa por três transformações de natureza simbólica: “Três metamorfoses do espírito menciono para vós: de como o espírito se torna camelo, o camelo se torna leão e o leão, por fim, criança.” Cada uma das partes do filme pode ser vista como uma encenação dessas metamorfoses e sua superação na direção da próxima.

 

Untitled.png

A aurora do homem é a primeira parte do filme e corresponderia ao camelo. Animal domesticado, o camelo é capaz de carregar pesados fardos e sobreviver com pouca água na travessia de imensos desertos. No Zohar e no Zend-Avesta, o quadrúpede é relacionado com a serpente do Jardim do Éden, quer dizer, remete aos estágios mais primitivos da humanidade, à gênese da diferenciação entre bem e mal. Não admira Kubrick começar o filme com a imagem dos primatas ainda não humanos — animais amedrontados pelos fenômenos naturais, em luta cega pela sobrevivência e incapazes de se defender de outros predadores — mas não domesticados. Até a primeira aparição do monolito negro e do alinhamento astral que sempre o acompanhará— Terra, Sol, Lua — a fusão de luz e trevas ainda não está consumada. Depois desse primeiro contato com o monolito e do primeiro alinhamento astral, os primatas aprendem a instrumentalizar o que lhes está à mão e, assim, a distinguir-se da natureza que até então os oprimia para tornarem-se sujeitos da violência. Rigorosamente, o monolito em si não causa nada e tampouco o alinhamento astral. Mas é impossível não fazer associações: há alguma implicação cósmica entre os acontecimentos? De onde surgiu esse estranho objeto? É divino? Foi ali colocado por extra-terrestres? É uma metáfora para a origem extra-terrena ou sobrenatural da inteligência humana? Uma pergunta menos óbvia parece ser quanto a distância entre o ancestral do homo sapiens — chamado Moonwatcher, Observador da Lua, por Clarke — que pela força vence seus semelhantes e o homo sapiens que dobra a força da gravidade pela tecno-ciência — essa distância é intransponível ou menor do que imaginamos?

primate.jpg

Outrora fostes macacos, e ainda agora o homem é mais macaco do que qualquer macaco.” Friedrich Nietzsche. Prólogo de Zaratustra §3.

A narrativa é omissa a esse respeito. Com meras sugestões, todas as instâncias narrativas são praticamente invisíveis (como sempre em Kubrick, aliás). Se o monolito é ou não o catalisador das mudanças, isso é algo que nós inferimos. O máximo que vemos é um corte abrupto abrindo a perspectiva do possível.

Com a mais longa e talvez a mais famosa elipse do cinema, a passagem da primeira para a segunda parte surpreende pelo contraste e, de um só golpe encontramos talvez a única afirmação definida do filme e sua primeira travessura com os espectadores: não importa o quanto nós evoluímos e nos distanciamos dos primatas, importa o quanto ainda não mudamos. O salto do primata ao astronauta é lícito porque muito pouco ou mesmo nada essencialmente mudou, após milênios de humanidade no planeta um padrão permaneceu constante. Descobriremos que esse padrão é a violência e o que veremos na tela é o eterno retorno.

Mas afirmar que ainda estamos próximos dos primatas primitivos é também outra forma de dizer que ainda desconhecemos muitas possibilidades. Há ainda muitas auroras, como a frase do Rig Veda que serve de epígrafe a um livro de Nietzsche chamado — Aurora. É uma forma de afirmar que a história da humanidade é a história das suas auroras, a repetição indefinida nossos erros eternos. É como se fôssemos os camelos de Zaratustra, aquele que cuida de camelos. Por isso, cabe a pergunta: o que ainda podemos ser?

Osso.png

Ao abrir a visão do espaço sideral, com as estações ao mesmo tempo imensas e minúsculas na tela, 2001 abre espaço para outras perguntas: se tudo é possível em pleno espaço infinito, se a imensidão espacial é atordoante por não caber num golpe de vista, o futuro está aberto. Mas estaria mesmo? Pois, de fato, há os limites da tela, o enquadramento escolhido pelo diretor, a valsa Danúbio Azul de Johann Strauss II (sem relação com o outro Strauss) a nos acalmar… Seria essa uma ironia com o próprio cinema, com sua história e a crise da narrativa clássica no pós-guerra— uma tentativa de vencer os limites da tela?

A segunda parte corresponderia, no esquema de Zaratustra, ao leão, isto é, à impulsividade, ao espírito indomado contrastando com o animal domesticável, aquele que afirma a sua liberdade, a própria encarnação do espírito nobre e livre que superará o animal de carga, domesticado e submisso: “por que é necessário o leão e não basta no espírito o animal de carga? Para criar novos valores.” É a parte mais longa do filme. Nela está a abertura essencial — o arco que vai do Observador da Lua a Dave Bowman (bow = arco, man = homem) permite pensar na presença de uma vontade de transcendência na natureza humana: nós queremos ser mais do que somos, não gostamos do animal que somos, queremos não sê-lo.

Aqui, a odisseia de Kubrick e Clarke começa a mostrar-se como uma nova mitologia para novas conquistas ainda por acontecer. A linguagem dessa nova mitologia depende da fotografia e do cinema. A experiência de fotógrafo de Kubrick vale aqui, na sua capacidade de fazer a câmera comunicar situações visuais dramáticas como se o fotógrafo não estivesse ali. Em 2001, essa capacidade é traduzida na obliteração das instâncias narrativas quase à transparência (uma constante paradoxal em Kubrick). Trata-se de foto-filmar de maneira tão exata de modo a enfatizar a imersão do espectador no espaço diegético, até o ponto de aceitarmos como realmente possíveis as situações contra-intuitivas do filme, a falta de gravidade e tudo o mais. Bem, para lembrar a verdade, em 1969 os primeiros astronautas passearam na Lua… Mas essa é a segunda travessura do filme, na qual a perfeita imbricação de imagem e som é determinante. Se o Zaratustra de Richard Strauss anuncia os grandes temas do filme — da infância da humanidade à superação do humano no filho do universo — o Danúbio Azul nos transmite uma sensação de tranquilidade que fortalece a ilusão das imagens (aliás: essa talvez seja a única sequência no filme inteiro em que respiramos tranquilamente — na ausência do humano). Embora fiquemos estupefatos e a todo momento nos perguntemos “como foi que isso foi filmado?!?”, ficamos tão imersos nesse espaço audiovisual que chegamos a crer convictamente naquelas imagens e jamais nos questionamos nunca termos estado lá!

2001-A-Space-Odyssey8a-1024x464.jpg

Mas é o computador da nave Discovery (“Descoberta”), HAL 9000 (com voz de Douglas Rain, no audio original) quem rouba a cena na segunda parte. E quem é HAL 9000? A sigla vem de Heuristically programmed ALgorithmic computer, “Computador algorítmico heurísticamente programado”. Mas HAL, como os astronautas o chamam, não é apenas um computador, e também não é exatamente um membro da tripulação. Protótipo fictício de uma inteligência artificial avançadíssima, intelectualmente superior, HAL é um subalterno, um instrumento para que a missão seja bem sucedida. Sua presença inicial sugere a inferioridade do inorgânico ao orgânico, uma subordinação das redes neurais ao cérebro humano. A estranheza de HAL — um computador que não só pensa como também tem vontade própria — é reforçada pela sua posição subalterna aos astronautas e reforça a ideia de que o pensamento, ainda que exteriorizado em máquinas e circuitos, está essencialmente ligado a estruturas biológicas orgânicas. Mas essa estranheza será completamente transtornada, pois HAL é um servo insubmisso, capaz de rebelar-se, de imaginar hipóteses imprevistas e desviar a própria programação quase ao ponto da criatividade absoluta. Com isso, ele toma o controle da missão ilicitamente e mostra-se, então, como o genuíno análogo do ciclope Polifemo: mítico, anti-herói, HAL materializa o antagonista primordial ao qual nada escapa — é impressionante a sequência da leitura labial, um só olho que tudo vê! Cinematograficamente, HAL é o complemento do alinhamento cósmico a pressionar a marcha do tempo — impessoal, é o mal absoluto, pura racionalidade materializada, sem corpo e sem alma, o lado escuro do Monolito, as sombras do Esclarecimento, a areia a emperrar o motor da história.

A violência perpetrada por HAL 9000 é asséptica e higiênica. Realizada pelo máximo produto tecno-científico, essa violência indica o potencial destrutivo do ideal civilizatório de domínio da vida e do universo por meios racionais: uma vez conquistada a Terra, conquistemos o espaço além do terreno. 2001 seria, assim, o western potencializado e levado ao máximo paroxismo: a conquista da fronteira vai eliminar a própria fronteira e a guerra não terminará. Apenas para não deixar passar o contexto histórico, em 1968 a Guerra do Vietnã e a Guerra Fria estavam em franco andamento. E se aceitarmos os termos de Max Weber, o desencantamento do mundo resultante da luta da razão contra o mito leva ao próprio paradoxo do esclarecimento materializado em HAL: usando da razão, aonde chegou a civilização, a não ser ao limite de sua própria destruição? A racionalidade instrumental dos primatas é levada às últimas consequências: para atingir um fim pré-programado, mesmo assassinar pessoas é um meio justificável. Para HAL, nada pode alterar o curso da ação pré-planejada, as metas não podem ser abandonadas em hipótese alguma. No fim das contas, HAL é a epítome da civilização racional com respeito a fins: sem emoção alguma, sem valor algum, a não ser sua própria lógica.

HAL.jpg

“Receio que não posso fazer isso, Dave”, é a fala tragicômica de HAL 9000.

Essas são as características humanas de HAL. Por isso, é uma violência desligá-lo? Essa me parece uma falsa questão, pois, bem, qual seria a alternativa? Mais interessante parece ser despontar aqui o que chamarei de teorema de Kubrick-Clarke: o humano conseguirá superar os algorítmos. Para tanto, só pode usar sua própria inteligência, da qual esses mesmos algorítmos originaram. Se compararmos Dave e HAL, vemos que, no momento de seu desligamento — o único momento de contato físico entre o homem e a máquina — HAL canta “Daisy” — no momento em que a razão se esvai, ela mostra suas raízes, exibe o que se esconde sob a capa fria da consciência racional. O retorno do recalcado é patético: longe de uma emotividade genuína, o que aparece é um sentimentalismo piegas, caótico e sem direção, sem sentido, simultâneo à desagregação de uma identidade pré-programada. Dave, ao contrário, mostra uma determinação racional longe de ser fria. Nessa sequência, a sua respiração pontua o ritmo das ações e, pela segunda vez no filme, acentua o paradoxo da claustrofobia a despeito do estar num espaço ilimitado — outra travessura do filme.

Parece que as possibilidades humanas não estão inapelavelmente determinadas pelas máquinas. Mesmo assim, os questionamentos permanecem: teriam as máquinas tomado conta de nossas vidas a ponto de não nos restar mais autonomia? Seria HAL a alegoria mais bem acabada de Frankenstein — será mesmo nosso destino sermos oprimidos por nossas próprias criações? O filme também não dá resposta definitiva a essas perguntas, e as ações de Dave Bowman não foram feitas para esclarecer qualquer sentido possível delas, mas para a sua sobrevivência. Retornamos, de certa forma, aos primatas e às palavras de Zaratustra – o que podia o osso do primata é o que também pode HAL 9000 — mas será apenas isso?

maxresdefault

Chegamos à terceira e final parte do filme, Júpiter e além do infinito. Agora, o astronauta ultrapassa um portal cósmico que o leva a outra dimensão, completamente desconhecida. A experiência audiovisual é indescritível. E é também irreprodutível em telas pequenas — ao menos uma vez na vida é preciso ver 2001 numa sala de cinema, com a maior tela possível.

O teorema de Kubrick-Clarke já ganhou um corolário: a natureza da espiritualidade humana está ligada à sua ancestral violência bestial, remontando ao primitivo humano-primata observador de estrelas distantes — uma violência prosaica, natural, desprovida de moralidade pois ligada diretamente à sobrevivência. Essa violência, no entanto, pode ser transvaloradasublimada, diria Freud — pelo êxtase causado por experiências de alheamento — de observar estrelas, passamos a viajar ao infinito. Findará, assim como o filme, junto com ele, a sensação de claustrofobia. Nosso conhecimento tecnocientífico pode ser usado também para isso — não o testemunha o cinema? Este filme, 2001, não é um prodígio de tecnologia? Para o bem e para o mal, reencontramos nossas crenças e nossas decepções no cinema — e essa é mais uma travessura de 2001 com seus espectadores.

O super-homem de Nietzsche é apenas uma criança. O filme e o romance posteriormente escrito por Clarke divergem em certos detalhes sobre o que pode essa criança, chamada Star-child (“Criança das estrelas”) por Clarke. Mas, com o retorno do tema de Zaratustra de Strauss, parece lícita a aproximação. A viagem astral propicia ao astronauta um encontro de transformação consigo mesmo, em outra temporalidade. Sua experiência sugere que a espiritualidade humana revela-se verdadeiramente na vivência do desconhecido, do que nos ultrapassa, a ponto de podermos olhar para o mundo com os olhos de uma criança, isto é, com inocência e curiosidade sem medo. É como se a história humana só pudesse ganhar sentido se conseguíssemos preparar o nascimento do que nos ultrapassa: uma criança além-humana.

edvard munch

Retrato de Friedrich Nietzsche pintado por Edvard Munch, c. 1906; Munch-museet, Oslo, Norway; De Agostini Picture Library/Bridgeman Images.

Na vívida prosa poética de Nietzsche, Übermensch significa um ir-além-do-humano, uma superação das nossas humanas limitações. Muito discutida e de fato ruim, a tradução por super-homem fixou-se no nosso idioma, mas a verdade é que o termo original nada significa de sobre-humano ou sequer de mágico. O ser humano não é finalidade, mas meio: “Grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio” [“Prólogo de Zaratustra”, §4]. Super-homem é quem transcende o homem, não uma divindade, muito menos alguém que possa hoje ser considerado um indivíduo superior aos outros. O além-do-humano é um tipo radicalmente diferente de ser humano, e, embora gestado por nós mesmos, capaz de transcender nossa condição imediata.

Muitas outras sugestões podem ser acrescentadas a essas. Seria a viagem ao espaço uma ascese ao divino? O filme também nada esclarece sobre isso. O espaço é uma grande metáfora: o vazio, o inexplorado, o alheamento do chão, a liberdade e a autonomia absolutas. Mas, de fato, os astronautas passam o tempo todo confinados no espaço fechado das naves. Na única ocasião em que um astronauta flutua solto no espaço, temos uma situação tétrica causada por HAL em que o espaço ilimitado torna-se prisão perpétua, as naves, féretros sidéricos — retomando a travessura do confinamento. Que será das relações humanas mediatizadas pelas máquinas? Estaremos condenados a recriar eternamente as condições nossa própria morte? De fato, estamos, sim, é isso o que fazemos desde sempre. Mas a quem cabe o controle — a nós ou aos algorítmos? Existe uma realidade humana dentro da máquina — seria a mente separada do corpo? Seria possível inserir vida mental em qualquer suporte inorgânico? Haveria um fantasma dentro da máquina? E essa vida mental, teria tendências inevitavelmente destrutivas ou criativas (se é que a separação é possível…)? Com essas perguntas, a viagem astral ganha múltiplos e indefinidos sentidos. É certo que o astronauta não projeta uma imagem preconcebida de vida no cosmos, evitando, assim, um antropomorfismo ingênuo. Por 2001, apenas as experiências humanas impulsionam o humano. Sequer podemos atribuir poderes mágicos ou vitais ao monolito ou ao alinhamento astral. Mas também é certo que ao libertar-se de suas vestes de astronauta e aparecer sem capacete, o astronauta declina velozmente antes da criança nascer.

Para uma criança, sua transformação, seu deixar de ser animal para ser o que está além de si mesma, só pode representar um novo começo, outro nascimento, inocência quanto ao futuro e esquecimento do passado. Dizendo sim para o desconhecido, talvez transformemos nossa maneira de ver o mundo e reecontremos, transformados, a nós mesmos.

Starchild.jpg

 

DICAS: Arthur C. Clarke escreveu contos que serviram de base para o roteiro, e este foi escrito em conjunto com Kubrick. Clarke escreveu o romance posteriormente, tendo como base a colaboração com Kubrick. 2001 é um caso raro e especial em que o romance é a adaptação do filme, e não o contrário. A história detalhada dessa colaboração é contada por Michael Benson, em seu 2001: Uma odisseia no espaço — Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a criação de uma obra-prima (trad.: Álvaro Hattner, Cláudio Carina. São Paulo: Editora Todavia, 2018), uma verdadeira “biografia” do filme. A leitura pode se tornar ainda mais interessante se acompanhada da audição das composições que fazem parte da trilha sonora do filme, facilmente encontrada de graça na Internet.

 

O começo ou o fim da América

Hoje, se fosse vivo, James Baldwin faria 93 anos. Um dos maiores escritores dos EUA no século XX, Baldwin foi também um dos grandes intelectuais ativistas de sua época. Em 1970, ele escreveu uma carta aberta a Angela Davis, então presa, na qual além de expressar solidariedade, reflete sobre o racismo, a militância negra e o significado da democracia nos EUA. Traduzo-a aqui, que eu saiba, pela primeira vez em língua portuguesa.

É um texto memorável e que pode dizer muito a nós, brasileiros, em 2017 – infelizmente, muita coisa não mudou para melhor, muitos problemas permanecem os mesmos. Mas, felizmente, podemos contar com o legado de James Baldwin e Angela Davis.

baldwin_davis

Querida Irmã:

Uma pessoa poderia ter esperança de que, a esta hora, mesmo apenas ver correntes sobre a Carne Negra, ou mesmo apenas ver correntes seria uma visão tão intolerável para o povo dos Estados Unidos e traria uma memória tão intolerável que o próprio povo espontaneamente se insurgiria e se livraria dos grilhões. Mas, não, parece que têm orgulho de suas correntes; agora, mais do que nunca, parece que medem sua segurança por correntes e cadáveres.

E então, a Newsweek, defensora civilizada dos indefensáveis, tenta te afogar num mar de lágrimas de crocodilo (“resta ver que tipo de liberação pessoal ela conseguiu”) e te põe na capa, acorrentada.

1cfafd8b759611bb51bbd21e9499e20c-angela-davis-black-history-month

Pareces muito solitária – tão solitária quanto, digamos, a esposa judia enviada num camburão para Dachau, ou tão solitária quanto qualquer um dos teus ancestrais, acorrentados todos juntos em nome de Jesus, enviados para uma terra cristã.

Pois bem. Já que vivemos numa época em que o silêncio não é apenas criminoso, mas suicida, tenho feito tanto barulho quanto posso, aqui na Europa, no rádio e na TV – na verdade, acabei de voltar de uma terra, a Alemanha, que se tornou famosa por uma maioria silenciosa, não faz tanto tempo. Pediram-me para falar sobre o caso da Senhorita Angela Davis, e eu o fiz. Muito provavelmente, um exercício de futilidade, mas não se deve deixar passar uma oportunidade.

Sou mais ou menos uns vinte anos mais velho do que és, sou, portanto, daquela geração sobre a qual George Jackson arrisca dizer que “não há irmãos sadios – nenhum”. De modo algum sou capaz de discordar dessa especulação (de toda forma, não sem descer ao que, no momento, seriam sutilezas irrelevantes), pois sei muito bem o que ele quer dizer. Minha própria saúde é certamente bastante precária. Ao considerar-te, e a Huey, a George e (principalmente) a Jonathan Jackson, comecei a compreender o que poderias ter pensado quando falaste dos usos que poderíamos atribuir à experiência do escravo. Parece-me que o que aconteceu, falando uma forma exageradamente simples, é que toda uma geração de pessoas avaliou e absorveu a história dos escravos e, nessa ação tremenda, essas pessoas libertaram-se dela e nunca mais serão vítimas. Isso pode parecer uma coisa estranha, indefensavelmente impertinente e insensível de dizer para uma irmã que está na prisão lutando pela vida – por todas as nossas vidas. No entanto, ouso dizê-lo, pois penso que talvez não me compreenderás mal, e, afinal, não o digo da posição de um espectador.

agosto2bnegro

Estou tentando sugerir que tu – por exemplo – não pareces ser a filha de teu pai da mesma maneira que eu sou o filho de meu pai. No fundo, as expectativas de meu pai e as minhas eram as mesmas, as expectativas de sua geração e da minha eram as mesmas; e nem a imensa diferença em nossas idades nem a mudança do Sul para o Norte conseguiram alterar essas expectativas ou tornar nossas vidas mais viáveis. Pois, de fato, para usar um palavreado brutal daquele tempo, a linguagem interior do desespero, ele era apenas um negro – um trabalhador pregador negro, e eu também. Eu mudei de assunto, mas isso não é mais importante aqui do que o fato de que alguns pobres espanhois tornam-se ricos toreadores, ou de que alguns garotos Negros pobres enriquecem – boxeadores, por exemplo. Isso raramente ou nunca permitiu às pessoas mais do que uma grande catarse emocional, embora eu tampouco pretenda parecer condescendente com isso. Mas quando Cassius Clay tornou-se Muhammad Ali e recusou vestir aquele uniforme (e sacrificou todo aquele dinheiro!), isso causou um impacto muito diferente nas pessoas e teve início uma espécie muito diferente de instrução.

O triunfo Americano – no qual sempre esteve implícita a tragédia Americana – estava em fazer as pessoas Negras desprezarem a si mesmas. Quando eu era pequeno, eu desprezava a mim mesmo; não sabia fazer melhor. E isso significava, embora inconscientemente, ou contra minha vontade, ou com grande dor, que eu também desprezava meu pai. E minha mãe. E meus irmãos. E minhas irmãs. Quando eu estava crescendo, as pessoas negras estavam se matando umas às outras toda noite de sábado na avenida Lenox; e ninguém explicou a elas, ou a mim, que era intencional que elas assim agissem; que elas estavam cercadas onde estavam, como animais, para que não considerassem a si mesmas mais do que animais. Tudo sustentava esse sentido de realidade, nada o negava: e assim, quando chegava a hora de ir trabalhar, uma pessoa já estava pronta para ser tratada como um escravo. Assim uma pessoa estava pronta, quando chegavam os terrores humanos, a se curvar diante de um Deus branco e implorar a Jesus pela salvação – esse mesmo Deus branco que era incapaz de levantar um dedo para fazer um mínimo para te ajudar a pagar um aluguel, incapaz de ser acordado a tempo de te ajudar a salvar as tuas crianças!

daressalaamconvicts-1024x721

É claro que sempre existem mais coisas numa pintura do que pode ser rapidamente visto, e nisso tudo – e apesar disso tudo – gemer e lamentar, observar, calcular, bancar o palhaço, sobreviver e levar a melhor – uma tremenda força estava em gestação, e ela é parte do nosso legado hoje. Mas esse aspecto particular de nossa jornada começa agora a ficar para trás. O segredo está revelado: somos homens!

Mas a articulação franca e aberta desse segredo amedrontou a nação até a morte. Eu queria poder dizer “até a vida”, mas isso é exigir demais de um agregado desorganizado de pessoas deslocadas que ainda estão como gado em seus vagões cantando “Onward Christians Soldiers”. A nação, se os Estados Unidos forem uma nação, não está minimamente preparada para esse dia. Este é o dia que os americanos nunca esperaram ou desejaram ver, não importa o quão piamente declarem sua crença no progresso e na democracia. Essas palavras, agora, em lábios americanos, tornaram-se uma espécie de obscenidade universal: pois esse infelicíssimo povo, fortemente crente na aritmética, nunca esperou ser confrontado pela álgebra de sua história.

Uma maneira de aferir a saúde de uma nação, ou de discernir o que ela realmente considera como seus interesses – ou a que ponto pode ser considerada como uma nação e não como uma coalisão de interesses particulares – é examinar as pessoas que ela elege para representá-la ou protegê-la. Uma olhadela sobre os líderes americanos (ou figuras de ponta) transparece que a América está no limite do caos absoluto, sugerindo também o futuro que os interesses americanos, se não a massa do povo americano, parece desejar consignar aos negros (com efeito, um olhar ao nosso passado mostra isso). É claro que para a massa de nossos compatriotas (nominais), somos todos dispensáveis. E os senhores Nixon, Agnew, Mitchell e Hoover, sem falar, naturalmente, no caso perdido de Em cada coração um pecado, Ronnie Reagan, não hesitarão um instante sequer em levar adiante o que insistem ser a vontade popular.

19-ronald-reagan

Mas o que, nos E.U.A., é a vontade popular? E quem, dos acima mencionados, é o povo? O povo, quem quer que seja, sabe tanto sobre as forças que colocaram os senhores acima citados no poder quanto sabem sobre as forças responsáveis pela matança no Vietnã. A vontade popular, nos E.U.A., sempre esteve à mercê de uma ignorância não apenas fenomenal, mas também sagrada e sacramente cultivada: o que de melhor pode ser usado por uma economia carnívora que democraticamente mata e vitimiza brancos e Negros igualmente. Mas a maioria dos brancos americanos não ousa admitir isso (embora suspeitem) e esse fato contém um perigo mortal para os Negros e uma tragédia para a nação.

Ou, para dizer de outra maneira, enquanto os americanos brancos refugiarem-se na sua branquitude – enquanto permanecerem incapazes de se livrarem dessa mais monstruosa armadilha – eles permitirão que milhões de pessoas sejam assassinadas em seu nome e serão manipulados por aquilo que pensarão ser uma guerra racial, justificando-a e sendo por ela rendidos. Enquanto sua branquitude interpuser uma distância tão sinistra entre eles mesmos e sua própria experiência e a experiência dos outros, eles nunca se sentirão suficientemente humanos, suficientemente dignos, para se tornarem responsáveis por si mesmos, pelos seus líderes, seu país, suas crianças ou seu destino. Perecerão em seus pecados (conforme dissemos certa vez na nossa igreja negra) – isto é, nas suas ilusões. E isso está acontecendo, nem é preciso dizer, por toda parte à nossa volta.

98921

(c) Henri Huet/AP

Apenas um punhado dentre os milhões de pessoas nesse vasto lugar estão cientes de que o destino pretendido para ti, irmã Angela, e para George Jackson, e para os inúmeros prisioneiros nos nossos campos de concentração – pois é o que são – é um destino que está prestes a engolfá-los também. Para as forças que governam este país, as vidas brancas não são mais sagradas do que as Negras, como muitos e muitos estudantes estão descobrindo, conforme provam os cadáveres de americanos brancos no Vietnã. Se o povo americano é incapaz de enfrentar seus líderes eleitos pela redenção de sua própria honra e pelas vidas de seus próprios filhos, nós, os Negros, os que somos as crianças ocidentais mais rejeitadas, podemos esperar muito pouca ajuda nas suas mãos; o que, afinal, não é nada novo. O que os americanos não percebem é que uma guerra entre irmãos, nas mesmas cidades, no mesmo solo, não é uma guerra racial, mas uma guerra civil. Mas a ilusão americana não é tão-só que seus irmãos são todos brancos, mas que os brancos são todos seus irmãos.

Que seja. Não podemos acordar esse dorminhoco, e sabe Deus como tentamos. Temos de fazer o que podemos e fortificar e salvar uns aos outros – não estamos nos afogando numa auto-displicência apática, sentimo-nos suficientemente dignos para enfrentar até mesmo forças inexoráveis para mudar nosso destino e o destino de nossos filhos e a condição do mundo! Sabemos que um homem não é uma coisa e não pode ser posto à mercê das coisas. Sabemos que o ar e a água pertencem a toda a humanidade e não apenas aos industriais. Sabemos que um bebê não vem ao mundo apenas para ser instrumento do lucro de alguém. Sabemos que a democracia não significa a coerção de todos para uma mediocridade letal e, no fim, malvada, mas, sim, a liberdade para que todos possam aspirar ao melhor que há ou que jamais houve em si mesmo.

Sabemos que nós, os Negros, e não apenas nós, os Negros, fomos e somos vítimas de um sistema cujo único combustível é a ganância, cujo único deus é o lucro. Sabemos que os frutos desse sistema foram a ignorância, o desespero e a morte, e sabemos que o sistema está perdido porque o mundo não pode mais se dar ao luxo dele – se é que na verdade um dia pôde. E sabemos que, para a perpetuação desse sistema, todos nós fomos impiedosamente brutalizados e apenas mentiras nos foram contadas, mentiras sobre nós mesmos e nossos próximos e nosso passado, mentiras sobre o amor, a vida e a morte, de modo que tanto a alma quanto o corpo foram aprisionados no inferno.

A enorme revolução na consciência Negra acontecida na nossa geração, minha querida irmã, significa o começo ou o fim da América. Alguns de nós, brancos e Negros, sabemos como é caro o preço que já foi pago para fazer existir uma nova consciência, um novo povo, uma nação sem precedentes. Se sabemos e nada fazemos, somos piores do que os assassinos pagos em nosso nome.

Se sabemos, então temos de lutar pela tua vida como se fosse a nossa – e ela é – e com nossos próprios corpos tornar intransponível o corredor para a câmara de gás. Pois, se vierem para te buscar de manhã, virão nos buscar à noite.

Portanto: paz.

Irmão James.

19 de novembro de 1970.

 

Martin Luther King, Jr.

Em 4 de Abril de 1967, Martin Luther King, Jr. fez um discurso na Igreja de Riverside, na cidade de Nova Iorque, contra a guerra do Vietnam, intitulado “Além do Vietnam“. Talvez este seja seu discurso mais pungente, e não o famoso “Eu tenho um sonho“, de 1963.

Martin Luther King Jr.

Pela sua teologia, o pastor e pregador Martin Luther King, Jr. incomodava à esquerda, cujos membros ateístas e materialistas tinham dificuldade em dialogar com a espiritualidade e a religiosidade populares. Pelas críticas abertas e cada vez mais radicais ao capitalismo e à sua intrínseca regulação combinatória de racismo e classismo, o socialista democrático Martin Luther King, Jr. incomodava ainda mais à direita, a ponto de J. Edgar Hoover enviar-lhe cartas forjadas e anônimas sugerindo o suicídio.

Exatamente um ano depois desse discurso, em 4 de Abril de 1968, ele foi assassinado por um franco-atirador.

51354334

Vista parcial do cadáver de Martin Luther King, Jr. no palanque montado para ele discursar no Motel Lorraine,

O status quo contra o qual ele lutou a vida toda esforça-se para transformá-lo num santo pacifista, nem de esquerda nem de direita, desinfetado de toda potencial ameaça, um “pai Tomás”, moldando sua imagem como se fosse um inofensivo “papai noel”, num processo chamado por Cornel West de “Santa Claus-ification” de Martin Luther King, Jr. Elogios à sua vida e sua luta frequentemente o colocam como o pacifista convicto antípoda a Malcolm X, esse sim, representante de uma terrível e violenta ameaça aos valores estadunidenses. A história oficiosa de Martin Luther King Jr. tenta retratá-lo como um herói limpo e puro que morreu para que o racismo e os direitos civis dos negros fossem garantidos. Um santo que seguiu o exemplo de Cristo, como cabe bem a um pastor.

Isso quer dizer que a disputa simbólica de seu legado ainda está aberta: que sentido teve sua luta? Por que foi assassinado?

No entanto, King não lutou apenas contra a injustiça racial, mas também em favor da justiça econômica e contra o militarismo, principalmente a guerra do Vietnã, identificando um vínculo essencial entre a perspectiva anti-racista e a perspectiva classista. Por causa disso, em seus últimos anos de vida, ele teve de enfrentar não apenas os ataques dos segregacionistas reacionários do Sul dos E.U.A., mas também o bloqueio e a chantagem dos manda-chuvas do Partido Democrático e até mesmo a resistência de outros líderes do movimento pelos direitos civis que ele ajudou a criar, pois o consideravam uma real ameaça ao sistema econômico estadunidense. De fato, vindo de um líder popular com tanta influência e com a sua envergadura, soa bastante revolucionária uma declaração como a seguinte:

Estamos agora fazendo exigências que terão um custo para a nação. Você não pode falar de resolver o problema do negro sem falar de bilhões de dólares. Você não pode falar em acabar com as favelas [slums] sem antes dizer que o lucro tem de ser tirado delas. Aí é que você está realmente incomodando e pisando em terreno perigoso, porque com isso você está se metendo com pessoas, você está se metendo com os barões da indústria. Ora, isso quer dizer que estamos pisando em correnteza forte, porque isso realmente significa que estamos dizendo que há algo de errado com o capitalismo. Tem de existir uma melhor distribuição de renda, e talvez os E.U.A. precisem mudar para um socialismo democrático.

Declarações como essa não constam de nenhum discurso, nenhum escrito seu. Isso facilita a apropriação simbólica de seu legado pela via de uma direita muito reacionária, que o usa contra o povo pobre, de origem afro-indígena, mestiço e periférico, ao qual ele pertencia e defendia. Hoje, o discurso em defesa dos direitos humanos, da igualdade racial e da justiça social é facilmente desqualificado como ilegítimo, pois a defesa a igualdade de oportunidades nunca teria sido problemática: “antigamente ninguém reclamava, antigamente as pessoas trabalhavam e não ficavam de mimimi”. Mas o fato é que não: quem hoje supõe uma igualdade e uma justiça que nunca existiram detesta ouvir falar de soluções e ações políticas, pois os problemas são considerados superficiais ou mesmo inexistentes. O discurso de ódio torna-se moeda corrente e a recusa da verdade histórica, uma couraça. Dada essa situação, não teria sido melhor Martin Luther King, Jr. ter sido mais explícito?

hqdefault

Sabe-se que ele não gostava de explicitar seu socialismo e até mesmo impedia que o gravassem defendendo uma posição explicitamente socialista. O trecho acima, segundo seu biógrafo Michael Eric Dyson, é a transcrição de um dos raros registros sonoros por ele autorizados. Segundo Dyson, Martin Luther King, Jr. não queria, em primeiro lugar, ter de explicar a todo momento que não era um comunista e, com isso, desviar a atenção dos assuntos realmente importantes. Entendendo o estrago que poderia ser causado à sua credibilidade pelas poderosas campanhas mediáticas de difamação e pelas táticas sorrateiras usadas pelo FBI contra ele, tanto no plano da vida pública quanto no da vida privada, ele habilmente evitava ser rotulado, e, com isso, perder legitimidade. Seu discurso político estava sujeito a chantagens e ataques que jamais preocupariam seriamente os brancos da esquerda estadunidense, fosse por serem brancos, fosse por pertencerem a famílias ricas. Para usar as chavões atuais, nos anos de 1950 e 1960, o lugar de classe protegia o lugar de fala dos brancos, tanto os da esquerda como os da direita. Não que os comunistas brancos não fossem verdadeiramente comunistas. Mas sua adesão aos ideais políticos não fora construída da mesma forma. Nos EUA daquela época, até mesmo exprimir-se em público sem o consentimento dos brancos já seria motivo, em certos lugares, para qualquer pessoa de origens africanas ser linchada e assassinada – imagine-se, então, defendendo ideias socialistas!

1918-004-16347ac7

Martin Luther King, Jr. soube compreender muito bem essa situação. Seu radicalismo político cresceu com sua experiência militante. Desenvolvendo-se no enfrentamento brutal da violência racista e classista, e não por meio de constatações teóricas, sua adesão a ideais socialistas evidencia-se nos seus últimos discursos. Mas ele também sabia que, por ser quem era e por ter vindo de onde veio, sua palavra tinha de respeitar limites próprios:  para ser compreendido, aceito e fazer jus às origens das comunidades religiosas afro-estadunidenses, com sua mistura bastante peculiar de escatologia, transcendentalismo e resistência, ele não podia falar como um branco. Entre seus próprios companheiros ele a aceitação de suas ideias sempre foi difícil e parcial, e esse ponto permanece ainda ocultado nas suas representações. Mesmo uma representação que o humaniza e não esconde suas falhas morais, como o filme Selma – uma luta pela igualdade (dir. Ava DuVernay, E.U.A., 2014), detém-se a um momento antes de sua radicalização socialista. Ao retratar as dificuldades da organização de uma marcha de protesto no Alabama, em 1965, o filme mostra a infidelidade de Martin Luther King, Jr. sem tergiversar, e, com isso, ressalta sua responsabilidade na vida pública ao mesmo tempo que sua irresponsabilidade privada, pessoal. Martin Luther King, Jr. não sobressai no filme como um herói, mas como líder de uma ação coletiva variada, muitas vezes incoerente, mas consciente e autodeterminada. Suas falhas pessoais não o impedem de agir politicamente e essa talvez seja a lição a ser tirada do filme: para seguir adiante, é preciso assumir as próprias contradições.

Imagem do filme Selma, representando uma cena de intimidade de Martin Luther King, Jr. [David Oyelowo], com sua mulher, Coretta Scott King [Carmen Ejogo].

Mas Martin Luther King, Jr., nascido e criado numa dessas comunidades do Alabama, conseguia entender com clareza algo que muita gente da esquerda ainda hoje não consegue entender, lá como aqui também. Ele entendeu que para ganhar vida e frutificar entre as pessoas – essas mesmas que a esquerda tenta alcançar – uma ideia não precisa vir com etiqueta. Aqui, é a vida do homem que quando criança foi espancado pelo próprio pai, que teve dúvidas quanto a si mesmo e quase se suicidou por isso, e que mais tarde também duvidou dos dogmas, mas no fim acabou se convencendo da verdade irrefragável dos interesses mais elevados do espírito humano – é essa vida que o faz superar e ignorar muros e murros para tornar-se o orador religioso que transmite ideias poderosas com palavras fortes sem com isso repetir cartilhas ideológicas – até os ouvintes em princípio mais duvidosos tornavam-se convictos de suas ideias. A transparência de sua linguagem atesta esse poder vital: suas palavras desvelam a mais nítida, decidida e sincera fé que um ser humano pode ter, a fé na verdade e na justiça, a fé nos direitos e na dignidade humana.

i_have_a_dream_t750x550

Um pouco dessa fé está nas palavras ora traduzidas desse discurso, que ficou conhecido como o discurso da revolução de valores.

Estou convencido de que, se é para ficarmos do lado certo da revolução mundial, nós, como uma nação, temos de passar por uma radical revolução de valores. Temos de iniciar rapidamente a mudança de uma sociedade “orientada-para-coisas” para uma sociedade “orientada-para-pessoas”. Quando as máquinas e computadores, os motivos de lucro e os direitos de propriedade são considerados mais importantes do que as pessoas, os trigêmeos gigantes do racismo, do materialismo e do militarismo são incapazes de ser conquistados.

Uma verdadeira revolução de valores logo nos fará questionar a equidade e a justiça de muitas das nossas políticas do passado e do presente.

A verdadeira compaixão é mais do que dar uma esmola para um mendigo. Uma verdadeira revolução de valores logo examinará com desconforto o flagrante contraste entre pobreza e riqueza. Com correta indignação, ela cruzará os oceanos e verá capitalistas individuais do Ocidente investindo imensas quantias de dinheiro na Ásia, na África e na América do Sul, apenas para aproveitar os lucros sem se preocuparem com a melhoria social dos países, e então dirá: “Isso não é justo”. Ela verá nossa aliança com os latifundiários da América Latina e dirá “Isso não é justo”. A arrogância do Ocidente, de sentir que tem tudo para ensinar a eles e nada para aprender com eles não é justa.

Uma verdadeira revolução de valores porá as mãos na ordem do mundo e dirá da guerra: “Essa maneira de resolver as diferenças não é justa”. Esse negócio de queimar seres humanos com napalm, de encher nossos lares [aqui] na nação com orfãos e viúvas, de injetar drogas venenosas de ódio nas veias de pessoas comuns e benévolas, de mandar de volta para casa homens fisicamente aleijados e psicologicamente transtornados vindos de campos de batalha escuros e sangrentos, isso não pode ser reconciliado com a sabedoria, a justica e o amor. Uma nação que continua ano após ano a gastar mais dinheiro na defesa militar do que em programas de estímulo social aproxima-se da morte.

Essa espécie de revolução positiva de valores é nossa melhor defesa contra o comunismo. A guerra não é a resposta. O comunismo nunca será derrotado pelo uso de bombas atômicas ou armas nucleares. […] Não devemos nos envolver num anticomunismo negativo, mas, antes, numa pressão positiva em favor da democracia, percebendo que nossa maior defesa contra o comunismo é partir para ação ofensiva em nome da justiça. Com a ação positiva, temos de remover as condições da pobreza, da insegurança e da injustiça que são o solo fértil em que a semente do comunismo cresce e se desenvolve.

 Nossos tempos são tempos revolucionários. Por todo o globo, os homens estão se revoltando contra velhos sistemas de exploração e opressão, e, das feridas de um mundo frágil, novos sistemas de justiça e igualdade estão nascendo. Os descamisados e os descalços da terra estão se insurgindo como nunca antes. As pessoas que estavam sentadas na escuridão viram uma grande luz. Nós, no Ocidente, temos de apoiar essas revoluções.

É de fato triste que, por causa do conforto, da complacência, de um medo mórbido do comunismo e da nossa tendência para nos ajustarmos à injustiça, as nações Ocidentais, as mesmas que deram início à grande parte do espírito revolucionário do mundo moderno, tenham agora se tornado as maiores anti-revolucionárias.

Isso levou muitos a sentir que somente o marxismo tem um espírito revolucionário. Portanto, o comunismo é um juízo contrário ao nosso fracasso na realização da democracia e no prosseguimento das revoluções que iniciamos.

Nossa única esperança, hoje, está na nossa capacidade de recapturar o espírito revolucionário e, indo por um mundo às vezes hostil, declarar hostilidade eterna à pobreza, ao racismo e ao militarismo. Com esse poderoso comprometimento, ousadamente desafiaremos o status quo e os costumes injustos, e, com isso, anteciparemos o dia em que “todo vale será exaltado, e todo monte e todo outeiro será abatido; e o que é torcido se endireitará, e o que é áspero se aplainará” [Isaías, 40: 4].

Uma genuína revolução de valores significa, em última análise, que nossas lealdades devem se tornar ecumênicas e não seccionais. Toda nação, agora, deve desenvolver uma lealdade predominante à humanidade como um todo para preservar o melhor em suas sociedades individuais.

Esse chamado à um companheirismo mundial que eleva a preocupação com o próximo além de tribo, raça, classe e nação individual é, na realidade, um chamado à um amor incondicional e global por toda humanidade. Esse conceito, frequentemente mal-compreendido e mal-interpretado pelos Nietzsches do mundo como um impulso fraco e covarde, tornou-se agora uma necessidade absoluta para a sobrevivência do homem.

Quando falo de amor, não falo de uma resposta sentimental e fraca. Não falo dessa força que é apenas uma tolice emotiva. Falo daquela força que todas as grandes religiões compreenderam como o supremo princípio unificador da vida. O amor é de alguma forma a chave que destranca a porta que leva à realidade última. Essa crença Hindu-Islâmica-Cristã-Judaica-Budista acerca da realidade última é belamente resumida na primeira Epístola de S. João: “amemo-nos uns aos outros; porque o amor é de Deus; e qualquer que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.
Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor. […] se nos amamos uns aos outros, Deus está em nós, e em nós é perfeito o seu amor.” [João 4: 7-12]. Esperemos que esse espírito torne-se a ordem do dia.

A verdade da pós-verdade

O texto a seguir foi recentemente publicado no Correio da Cidadania, com o título de “A verdade da política da pós-verdade“, aqui ligeiramente modificado, apenas para resumir a ideia principal.

Com a recente notoriedade da teoria dos fatos alternativos, creio que o texto não perdeu a ocasião.

Espero que a escrita não seja enfadonha a ponto de obscurecer o argumento.
Cordiais saudações e boa leitura.

* * *

Agradeço a José Crisóstomo de Souza e Adriana Silveira pelas sugestões que me permitiram melhorar o texto. A responsabilidade total pelo escrito permanece minha.

Como assim pós?

Em 2016, “pós-verdade” tornou-se tão comum que foi escolhida a palavra do ano pelo dicionário Oxford. A justificativa é uma expansão do significado de “pós”. O prefixo deixou de significar apenas depois de, sendo usado também para demarcar o sentido de “próprio de uma época em que certas ideias e conceitos perderam importância”. Se nossa época é a da pós-verdade, então a verdade para nós não importa. Pouca gente talvez discorde de que a política é o palco maior dessa desimportância. Constatamos: nos nossos tempos, a verdade se tornou irrelevante, os fatos se tornaram irrelevantes. Mas, pergunto, em nome de quê?

As declarações de Corey Lewandowski, ex-coordenador da campanha de Trump, não deixam dúvidas: o “povo americano” entendeu que Trump é como qualquer pessoa comum, “ às vezes – quando você conversa com as pessoas, por exemplo, à mesa do jantar ou num bar –

CysxqCKW8AESiF2.jpg

Tabela da pós-verdade

você vai dizer coisas e às vezes você não tem todos os fatos para sustentar o que diz”. Pouco importa se Trump diz verdades ou não, importa quem vai acreditar nele, importa o efeito que suas declarações provocam, o sentimento causado nas pessoas pelo discurso. Trump conseguiu causar efeito, não há como negar. Sua campanha explorou à exaustão a persona dele como um sem noção que fala todo tipo de barbaridades sem freio. Isso o aproximou de muita gente comum, deu a impressão de que ele é um cara qualquer. O problema é que Trump não é qualquer um num bar e a eleição presidencial dos EUA não é o jantar de sábado na casa da vovó. Muita gente simplesmente aceitou suas declarações sem procurar compreendê-las – e por que deveriam, se não são verdadeiras mesmo? Mas, por outro lado, ele diz o que muita gente quer dizer e não pode, então, na cabeça dessa gente que com ele concorda, se não são verdadeiras, deveriam ser. Né não?

Fica fácil entender: quanto mais a política torna-se exageradamente emotiva e irracional, mais será recusada e invalidada. Com o aumento de votos nulos, brancos e abstenções, sequer o princípio do voto da maioria pode ainda ser sustentado. A própria ideia de votos “válidos” é uma falácia: a soma dos votos dos primeiros candidatos sequer alcança os votos nulos e em branco. Exemplos não faltam, lá como aqui, ali, acolá. A desilusão com as falhas da democracia representativa em moldes burgueses elege há anos um candidato chamado Ninguém, talvez descendente do mesmo Ninguém que furou o único olho do ciclope Polifemo.

Chi vuol esser lieto, sia; di doman non c’è certezza

Mas a mentira sempre fez parte da política, não é verdade? Ao menos desde Maquiavel, sabemos que mentir faz parte do jogo do poder. Sem jamais ter se comprometido com o princípio rasteiro que lhe garantiu lugar na história universal da infâmia, ele defendia, sim, que certos fins podem justificar certos meios: conforme as circunstâncias, é útil ser pontualmente imoral. Não se sustenta a leitura, apressada e superficial, de que ele entendia a política como um âmbito de amoralidade no qual todos os valores são relativos conforme os interesses do momento. Maquiavel jamais defenderia a mentira, a traição e a violência como equivalentes à verdade, à lealdade e à vida, na política ou em qualquer outro domínio. Para ele, é fundamental reconhecer a imoralidade de certas ações sem escamoteá-la, porque se as circunstâncias exigirem é útil servir-se delas.

fuchs-margin_28mmw10f50_f6r29_detail

Essa ilustração de uma raposa vestida de monge lendo um livro está num Livro de Horas do século XV. Do acervo do Museum Meermanno-Westreenianum.

No entanto, imoralidades são autorizadas apenas em nome de um bem maior, que ele identificava, na sua época, à unificação da Itália segundo princípios republicanos. A mentira pressupõe a verdade, ela não diminui sua importância, ao contrário, é necessário saber distinguir muito bem uma da outra, inclusive porque sem isso seria impossível saber quando e como mentir. E mais do que mentir e cometer violências, Maquiavel propõe o uso da inteligência contra a ferocidade cega dos inimigos: para temperar a fúria e a força dos leões, uma boa dose de astúcia própria das raposas é sempre valiosa.

O que temos hoje é muito diferente. O blefe domina o que hoje chamam de política e nivela tudo pela sua régua. Mas a quem interessa igualar a ação política ao blefar? Diferentemente do que temos hoje, a política (ou a grande política, se falarmos com Gramsci) sempre teve a verdade por princípio, como atividade de definição das prioridades coletivas, das finalidades sociais, das metas. Desde Platão, o controle da vida é um problema político inevitável e as perguntas postas em público sempre foram: controlar a vida em nome de quê? Qual o objetivo? Quando interesses não explícitos passam a ser mais determinantes do que interesses públicos, a política perde terreno para a administração do imediato. O blefe passa, assim, ao primeiro plano.

A persona Trump evidencia esse movimento. A política se dá no domínio do puro efeito discursivo, da mera enunciação. Como sabemos, falar é fazer, e o que Trump faz muito bem é causar reações na audiência, sem qualquer preocupação com os fatos. Uma das maiores barbaridades por ele ditas na campanha, a da construção de um muro separando EUA e México, foi tão estapafúrdia que funcionou: um grande industrial mexicano ofereceu-se para fornecer-lhe o cimento, pensando nos bons rendimentos dos negócios. Trump aposta: na política, no mundo das competições empresariais ou no pôquer valem a agressividade e o improviso rápido. Sua última bravata foi: “Além de ter ganhado com folga no Colégio Eleitoral, ganhei no voto popular se você deduzir milhões de pessoas que votaram ilegalmente”, implicando novamente que houve fraude nas eleições. E não é essa a sensação geral, a de que o sistema político está totalmente fraudado?

Trump é o maior dos blefadores, mas não o único. Também Doria, Bolsonaro, Crivella, Russomano e Lula (entre muitos outros…) blefam magistralmente, apesar de seus defensores não gostarem de admitir. E blefam sem vergonha de blefar. Conforme a lógica dos marqueteiros, pouco importa se o que dizem será desmentido ou não, se sua imagem é coerente com sua história de vida ou não, importa que há quem compre. A diferença entre suas personas é de grau, não de essência. O que conta é a capacidade de levantar as massas, provocar os ânimos e angariar o maior número de seguidores, pseudo-crentes e acríticos. O discurso visa acordar o ódio (ou o amor, ou o medo, ou a ganância, ou a compaixão etc.) dormente nas pessoas e, para isso, quaisquer meios valem. Além da verdade e da mentira, desprezam completamente todas as críticas. Richard Stengel, subsecretário de Estado para a diplomacia pública dos EUA, acertou na mosca com sua própria versão do famoso print the legend: “Gostamos de pensar que a verdade tem de lutar pelo seu lugar no mercado [minha ênfase] das ideias. Pois bem, hoje em dia ela pode estar perdendo nesse mercado. Simplesmente ter mensagens baseadas em fatos não é suficiente para ganhar a guerra da informação”.

A nossa versão disso é o atrapalhado não temos provas, mas temos convicções, o que evidencia não se tratar de mera retórica nos moldes tradicionais. Se os políticos tradicionais sempre podiam encontrar razões para justificar suas mentiras e o voltar atrás nas palavras empenhadas (veja-se o caso de José Serra), os de hoje sequer se preocupam com justificativas, pois não querem mentir para manipular os fatos, mas as pessoas.

Os de antigamente também, não? Sim, mas eles usavam a credibilidade para persuadir, ao passo que os atuais persuadem pela sua total falta de credibilidade. Trump foi tão desmentido que ganhou a eleição. Dane-se o acordo com os fatos, os fatos é que têm que concordar comigo!

Entre nós, o mesmo se dá: quando um pedido de impeachment de Golpista foi protocolado na Câmara dos Deputados, Janaína Paschoal, coautora do pedido contra Dilma Rousseff, alega falta de base jurídica. No desgastado e improfícuo debate entre os doutos, parece ter mais razão quem não vê razão alguma em lugar algum: “Não vejo base [para o impeachment de Golpista]”, disse o professor Floriano Peixoto de Azevedo Marques, respeitado jurista e titular da Faculdade de Direito da USP, “se bem que, no caso da Dilma, não tinha também e foi declarado o impeachment”.

 

tb3ktdy

Patana ou Banato, versão pós-verdadeira da ilusão do Pato-coelho.

We live in a bubble anyway, why not to make the most out of it?

Nesse contexto, não admira ser inútil replicar exaustivamente as conversas que denunciam a armação do Impeachment para parar as operações da Polícia Federal. Golpista até ganhou o prêmio “Brasileiro do Ano”, já dado, aliás, a Lula há alguns anos. É preocupante, porém, que esse desprezo pela verdade encontre tanto respaldo social. Em toda parte, esse tipo de raciocínio fingido é assustadoramente dominante. Onde viceja o antimétodo, fenece a atitude genuinamente científica: em vez de raciocinar para estabelecer alguma conclusão, primeiro adotamos uma conclusão e só então construímos um raciocínio com o objetivo de justificar essa adoção. Esse é o mecanismo dos algoritmos na Internet: apenas replicam infinitamente nas nossas telas conteúdos parecidos com os que já partilhamos e aos quais, de uma ou outra maneira, demos nossa aprovação. Isso fortalece a falácia da verdade ser uma narrativa como qualquer outra, a qual pode ser preferida ou preterida conforme preferências pessoais. Perguntar se a vontade de crer é efeito dos algoritmos, ou se os algoritmos correspondem a uma niilista e já antiga vontade de crer, é como perguntar quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. É o outro lado da pós-moeda: a melhor narrativa é a mais aceita, aquela que mais “emociona” as pessoas é a melhor. – You can’t handle the truth!But frankly, my dear, I don’t give a damn.

Com a Internet e a espetacularização desmedida da vida, é cada vez maior a sensação de vivermos todos num Show de Truman, ou numa Matrix. Cresce o apego acrítico das pessoas às suas próprias convicções. Não se trata de informar, dizia Umberto Eco, mas de produzir consenso por meio da desinformação. Onde está o real? Como verificar uma informação? Como descobrir o que é verdade ou mentira? Impossível. Por isso mesmo abundam também as constatações: os desastres são mostrados, os escândalos divulgados, as delações premiadas e as informações são exatas. Mas como entender tudo isso? Na dúvida, compartilhamos. Compartilhamos. Fragmentamos. Diluímos. Ou liquidificamos, como prefere Zygmunt Bauman, alçado midiaticamente a posto de arauto de nossas autodecepções.

O resultado são dicotomias estanques: bem e mal; real e virtual; nós e eles. No fim das contas, chegamos apenas à impossibilidade de pensar de maneira menos ingênua, e, se tiver razão Eco, imbecilizamo-nos todos. O nascemorrenasce do falso é implacável: cremos mais nas propagandas de celular. Quando questionamos, é sempre de imediato e com fôlego curto. Some-se a isso o infinito círculo de vulgarização midiática das incertezas da ciência que, como Trump, já entrou até n’Os Simpsons: afinal, comer bananas faz bem ou mal? Não era o ovo frito o vilão da história?

E, de fato, se ainda pensarmos existir alguma verdade universal, pura e eterna, é impossível ir além de constatações simplistas. Uma verdade assim estaria mesmo fora de alcance humano, só compreensível a divindades, pois nosso conhecimento é feito de opiniões, hipóteses, tentativas e erros. Nossas representações são sempre parciais e ninguém é dono da verdade. Por isso mesmo é preciso analisá-las: alguém pode em algum momento conhecer alguma verdade. Se fosse absolutamente impossível distinguir uma declaração verdadeira de uma falsa, até a leitura deste texto seria impossível. Se estamos inevitavelmente enredados na linguagem, nem por isso tudo que experimentamos pode ser reduzido às nossas idiossincráticas escolhas de vocabulário. O problema está em como reconciliar duas esferas, a da experiência de fenômenos irredutíveis à nossa imaginação e a da representação dessa experiência. Reduzir a primeira à segunda é o erro que sustenta a política da pós-verdade.

A bolha do ursinho Puff, que na verdade é ursinha

A ignorância quanto aos métodos empíricos da pesquisa científica é um dos mais amargos fracassos do Iluminismo: a ciência não produz crenças estáveis, mas, na verdade, é uma atividade que continuamente busca ir além de si mesma, sempre em busca de novas e melhores conclusões, mirando o ideal da verdade divina, num movimento que torna todas as nossas crenças e conclusões atuais em opiniões meramente provisórias. O cientista sabe que essa verdade ideal é inatingível, mas não abandona a meta. E, de certa maneira, a vontade de crer impele a investigação científica e também as pessoas a escolherem um candidato como Trump, ou como os pastores da ganância e da religião comercializada de hoje em dia: eu posso até ter dúvidas, mas confio nas certezas dele. Abandonamos, então, a diferença entre o genuíno conhecimento científico e o raciocínio fingido? Se assim fizermos, teremos cedido completamente à chantagem pseudo-nietzschiana de que a verdade é só uma moeda gasta e, por isso, sem qualquer valor, bem ao gosto dos pós-modernismos de direita (embora alguns se pretendam de esquerda; ou vice-versa).

Ora, uma coisa é dizer que estamos imobilizados numa sensação de falta de verdade e sem noção de realidade, outra muito diferente é defender que a própria realidade é efeito narrativo e não há distinção possível entre o real e seus simulacros. A verdade se tornou para nós algo muito mais complexo do que uma pontual identificação entre ideias e fatos, mas isso não nos escusa para recusá-la totalmente. Perdoem-me meus amigos lógicos se faço aqui uma grosseira simplificação de Alfred Tarski, mas se não somos capazes de enunciar uma verdade de fato e as condições dessa enunciação numa única linguagem, podemos sempre recorrer a uma metalinguagem, isto é, podemos sempre falar sobre como falamos, e esse exercício nos leva à autorreflexão, a tomar distância de nós mesmos, o que nunca foi fácil nem simples. Mas é a única maneira que temos de furar a bolha.

Sempre as mesmas perguntinhas incômodas…

No Zeitgeist contemporâneo, volta e meia nos deparamos com o tremendo papo-furado de que tudo são convenções socioculturais, a verdade não existe e a existência é uma grande ilusão, da qual só o zen-xintô-yoga-neo-tao-budismo nos libertará.

posverdade

Pós-verdade ou prol interesses?

Como disse, porém, um velho poeta (esse sim, verdadeiro fascista): bello, ma non funziona. Quando nascemos, o mundo já é. Tomar consciência de nós mesmos é um processo: em algum momento de nossas vidas, nós nos damos conta de estar em meio a coisas que já existiam e que têm inúmeras características, mais do que conseguimos contar. Nossa própria vida mental é resultado de raciocínios que fazemos para explicar a relação entre os mundos interno e externo: nós caracterizamos as coisas de maneira ideal além de considerá-las objetivamente, como independentes de nós mesmos. Nosso próprio self é o resultado de um raciocínio, o que chamamos de autoconsciência é a conclusão de um processo ilativo.

Depois, passamos o resto da vida encontrando premissas para reforçar a conclusão. Mas quase nunca pensamos nisso, porque tal tipo de autorreflexão só é suscitada quando alguma ocasião nos apresenta algo que não se adequa aos nossos hábitos mentais. Sem isso, podemos passar a vida toda sem nunca reconhecer a possibilidade do questionamento, e a diferença entre o que é real ou ficção então ou é artificial ou é absoluta. Esse tipo de questionamento só pode surgir do desconforto, com uma dúvida real, e não é algo que podemos fazer de conta duvidar. Quer dizer, podemos, mas aí, quem precisaria de gênios enganadores? Acontece que a possibilidade de estar sendo enganadas sequer passa pela cabeça das pessoas: ora, se é um jornal, por que mentiriam para mim? Jornal não é pra informar? Informação não é verdade?

Essa atitude não é absurda, mas insuficiente. Absurdo é pensar que não somos manipuláveis. Esse pensamento é avesso à autocrítica, princípio básico da genuína atitude científica: reconhecer os erros, revisar as conclusões e pô-las à prova pública, para qualquer pessoa poder averiguar. O pressuposto da publicidade do conhecimento é a vida da ciência, manter segredos é próprio de interesses de outras ordens. Se o conhecimento científico não é infalível e suas conclusões nunca são suficientes, é porque a verdade científica só é conhecida quando corrigimos nossos próprios erros e conseguimos medir o tamanho de nossa ignorância. E tal processo só pode ser válido se for público, isto é, coletivo. Querer aprender com os próprios erros é o contrário do raciocínio fingido comum hoje em dia, mas é difícil e muitas vezes doloroso.

Para aprender, temos de ir além das meras constatações de fato sem esquecê-los. Uma vantagem nisso, talvez pequena, mas ainda assim importante, é adquirir a compreensão de como podemos nos enganar quando relacionamos nossas narrativas pessoais aos acontecimentos externos. Em outras palavras, é preciso questionar a maneira como interpretamos as representações que fazemos dos fatos. Muito mais fácil do que analisar as causas é enumerar constatações. Interpretar a sequência e o entrelaçamento dos acontecimentos, dar uma explicação para a continuidade entre eles depois de pensar, estudar, debater, ouvir outras vozes e argumentos, dar espaço a diferentes possibilidades, tudo isso é muito trabalhoso. A quem se fecha em posições absolutas, qualquer perguntinha simples – Quem? Como? Por quê? – é um grande incômodo.

As emoções são como as flores selvagens e não estou brincando

Hoje em dia, acostumamo-nos com a ideia da mentira, principalmente em política. Políticos mentem. Ninguém mais tem ilusões, todos são iguais. Esse nivelamento rasteiro permite escolhas rasteiras: qualquer um que apareça diferente do comum é melhor que o já conhecido. Para manter a ordem social vigente, os poderes que estão por trás das eleições, os grandes financiadores de campanhas, dependem de não questionarmos a sua interpretação da verdade, assumindo-a como a nossa.

Ora, a verdade sempre foi entendida como o acordo entre as palavras e as coisas, entre as representações e os fatos, mas esse acordo pode ser entendido de diversas maneiras, interpretado de vários ângulos, o que não significa que tudo é subjetivo, relativo ou coisa que o valha. Por diversos caminhos se chega à verdade, como dizia Agostinho. Por que, então, devemos nos contentar com apenas um único caminho? Por que não questionar as interpretações oferecidas dessa concordância em vez de desqualificar a própria verdade? Pensando assim, Richard Rorty, recentemente lembrado por ter “previsto” a eleição de Trump, tinha mesmo razão: a falência de uma boa parte da esquerda deve-se à incapacidade de dialogar com as pessoas cujos interesses pretendeu defender.

Aceitando a perfectibilidade do “sistema”, quer dizer, abandonando o discurso mais radical da transformação em nome de ideias menos polêmicas e por isso mesmo mais vagas, como “governabilidade”, “fazer o que for possível” etc., o pensamento à esquerda cedeu ao charme da pós-verdade. O próprio Rorty foi um dos críticos da distinção entre uso e interpretação e da tentativa de descrever a realidade tal como ela é. Contudo, ele também defendia que a provisoriedade e a falibilidade do nosso saber não bastam para desistirmos de estabelecer critérios para interpretar como pensamos ou descrevemos o mundo. Ou arriscamos interpretações e as submetemos à prova pública, ou então cedemos a um niilismo fácil e conformista, dizendo que como não pedimos para nascer, também não devemos fazer esforço para morrer. Pífio. Surpresa alguma o próprio Rorty ter nostalgicamente escrito sobre Trotsky e as orquídeas selvagens…

Quanto mais reagirmos politicamente com emoções as mais primitivas, mais seremos manipulados, mais estaremos à mercê de interesses que desconhecemos. Vivemos num tempo de graves e globais ameaças à democracia. É fundamental resistir à chantagem irracionalista, muito mais útil aos tiranos e sicofantas do que aos pobres, desterrados e espoliados, a imensa maioria de trabalhadores do mundo. É preciso retomar os canais de comunicação com o público – não falo apenas dos media, aliás, falo além deles: é imprescindível resistir aos media tais como hoje são dirigidos, mas a resistência deve almejar a invenção de meios de compartilhar o conhecimento que não se reduzam a mercadorias e não se pautem exclusivamente pelas reações emotivas da massa.

Chomsky há anos vem defendendo esse ponto: “Você não fala a verdade para ninguém, isso é muito arrogante. O que você faz é se juntar às pessoas e tentar descobrir a verdade com elas, então você as escuta e diz a elas o que pensa e tenta encorajá-las a pensar por si mesmas”. Talvez seja isso mesmo o que nos falta: mais humildade para pensar junto e esperança de ir adiante.

Sobre o natural lugar de fala da mulher brasileira

Ontem dei uma aula sobre análise semiótica do discurso, usando como base um antigo texto de Jakobson que já foi mais lido no país, “Linguística e poética“, de 1960. O objeto de estudo foi o discurso da Primeira Dama Marcela Temer. A análise a que chegamos foi mais ou menos a seguinte (explicando só um pouco os termos técnicos pra não chatear o público).
Vamos entender o discurso não apenas como o que ela fala, mas como o todo que articula formal e intencionalmente imagens, gestos e palavras. Isso é importante porque permite relacionar elementos que estão ali com elementos que vêm de fora, como o contexto histórico e cultural brasileiros (respectivamente, os elementos diacrônicos e os sincrônicos, como Jakobson diz; ou, então, num outro vocabulário, o simultâneo e o linear). Relacionando esses elementos de alguma maneira, uma função é realizada, quer dizer, o discurso comunica alguma coisa a alguém (nós, no caso). Em outras palavras, o uso pragmático, o uso efetivo da linguagem, coordena a sintaxe – a organização dos signos – e a semântica – o domínio dos significados – de uma certa maneira, tendo em vista produzir certo efeito em quem o discurso almeja atingir. 
Como não podia deixar de ser, os elementos auto-referenciais são determinantes no discurso da Primeira Dama: as cores, a vestimenta à Disney, o penteado, tudo faz voltar a ela como a imagem da pureza, da simplicidade e da suavidade. É o que Jakobson chama de função poética da mensagem, quer dizer, os elementos estéticos ressaltam a própria linguagem, a mensagem ela mesma é enfatizada pela integração de forma e função: a equivalência dos elementos ali presentes – cores, gestos, palavras etc. – torna-se constitutiva da própria organização lógica da mensagem, quer dizer, no fim das contas, do próprio conteúdo (não há diferença entre forma e conteúdo; o conteúdo é resultado da forma, se preferirem dizer assim). Os gestos e a postura corporal, bem como a entonação da voz, mais propriamente caracterizáveis como elementos metalinguísticos, que reforçam o acordo entre enunciadora e destinatários sobre a própria linguagem usada, reforçam essa impressão.
No caso, a própria Primeira-Dama é a mensagem fundamental, muito mais importante do que sua fala, a qual torna-se mero apêndice de sua imagem. Dessa auto-referência, a referência ao contexto externo decorre, quer dizer, é dessa imagem que extraímos outros elementos constitutivos da mensagem – o co-texto, isto é, o que está junto, colado ao texto – não necessariamente explicitados nas palavras: a posição oficial da mulher no país. Confirma essa hipótese a declaração do próprio Michel Temer: “A presença da Marcela como embaixadora visa exatamente a incentivar as senhoras mulheres do país“. Note-se que o enquadramento a coloca no centro do nome do país, bem como antes ela estava na cadeira central entre os outros. Há outra (única) mulher além dela ali presente, mas quase não é percebida. Ela fica de fora da foto oficial, só é vista no vídeo, e sua imagem se funde à dos homens pela vestimenta.
O próprio conteúdo do discurso é dado por essa forma, a começar pela ideia de que o instinto impele as mulheres ao cuidado com as crianças. Não é natural que as mulheres sejam assim? Daí que sua atividade não possa ser outra que maternal. Não é esse papel central e decisivo num país? Que tipo de besta-fera seria quem discordasse da necessidade de dar amor e carinho às nossas crianças? Quem discorda de que as crianças gostam de ser embaladas com as mais tenras cantigas antes de dormir? Até a ciência o confirma… O desenrolar do discurso produz o efeito de equivalência entre as palavras escolhidas para serem pronunciadas por Marcela Temer: “crianças”, “cuidado”, “instinto”, “sentimento”, “desenvolvimento”, “gestação”, “causas sociais”, “colaborar”, “primeiros anos de vida” etc. E a escolha das equivalências constitui a própria organização lógica do discurso. Note-se ainda que a Primeira-Dama entra em cena logo após o término da fala anterior, com a seguinte afirmação: é preciso fazer desta pátria uma mãe-gentil. Mesmo que ela não queira? Mas, então: quem não quereria?
Como artifício, tudo isso desmonta quando a espontaneidade genuína aparece: ao saudar os jornalistas, a Primeira-Dama deixa escapar um retroflexo.  Aí, quando a linguagem chega aos destinatários (pela sua função conativa, quer dizer, de contato, proximidade entre quem fala e quem ouve), fica impossível não estabelecer uma identidade à sua enunciadora: sua origem caipira-paulista contrasta com as exaustivamente perfeccionadas flexões posteriores, as quais na verdade a distanciam da maioria da população brasileira. Se isso não revela a que ponto chegou o treino, ao menos evidencia a encenação, muito bem pensada. O hábito, então, não se tornou uma genuína segunda natureza, mas uma máscara sobreposta à primeira, a qual teima em romper a segunda, denunciando-a. Será que, aqui, a verdadeira essência está plenamente adequada no lugar natural a ela atribuído pelo discurso? Existe uma essência além do discurso? Existe, sem dúvidas, um lugar oficial e ele já está ocupado. É dele que Marcela Temer fala.
A distância entre o vivido e o intencionado mais uma vez revela o trabalho das mediações. Oferecidas como se naturais fossem – como um produto, pronto e acabado para o consumo – dificultam a construção de outras. Daí a necessidade de soltar-lhes os nós.

A juventude contra o espelho dos canalhas

Há uns dias, o general francês Paul Aussaresses reapareceu das trevas e uma declaração dele pulou como saci na minha frente (tal como transcrita na Folha de São Paulo): “Eu vou atravessar uma porta, e diante dessa porta tem um espelho, vou olhar para esse espelho e não quero ver um canalha.” Paul Aussaresses foi um dos generais franceses a cargo da tortura dos prisioneiros na guerra contra a independência da Argélia. Posteriormente, ainda deu treinamento a militares da América do Sul, a convite de John Kennedy, nos EUA, inclusive brasileiros. Posteriormente, também ensinou táticas militares e de tortura no Brasil, em Manaus, no Centro de Instrução de Guerra na Selva (Aussaresses era amigo pessoal de João Batista Figueiredo). 

Esse espelho também reaparece numa declaração da ex-secretária de Goebbels, Brunhilde Pomsel. Ela está viva, com incríveis 105 anos e mais incrível vivacidade e lucidez ainda e é tema de um recente documentário que ainda não chegou às telas brasileiras. Diz ela o seguinte, segundo uma reportagem de The Guardian:
Ora, se ela apenas datilografava mesmo, teria motivos como Aussaresses para sentir culpa? Ao menos por ser pessoa de máxima confiança para o intolerável? Ela mesma diz que não era só isso, também foi responsável por mascarar estatísticas e esconder dados comprometedores. Seria isso tudo? Difícil saber.
Das falas de Brunhilde Pomsel, uma das mais significativas é a seguinte:

“Essas pessoas hoje em dia que dizem que teriam lutado contra os nazis – creio que elas dizem isso sinceramente, mas, acredite, a maioria delas não teria lutado.”
7e01f6bcde7d3a0b0dd3266211f28309
Isso é absolutamente revelador, menos do caráter da velha senhora, muito mais do nosso! O depoimento de uma pessoa que viveu no coração das trevas e está ainda viva e lúcida para contar suas memórias já basta, por si só, para atestar a sobrevivência do ideário nazista em nossa época. Muita gente pensa que esse ideário é coisa do passado, mas Brunhilde Pomsel é ela mesma a prova de que essa é uma perigosa ilusão. E o ponto crucial ela mesma indica: o Nazismo foi como “uma espécie de feitiço” sobre a Alemanha. “Talvez eu possa aceitar as acusações de nunca ter me interessado por política, mas a verdade é que o idealismo da juventude poderia facilmente te fazer ganhar um pescoço quebrado.”
E  de fato: nem o nazismo, com toda a propaganda de Goebbels, conseguiu domesticar a juventude completamente. Pelo livro de Jon Savage, A Criação da Juventude, podemos saber que a juventude hitlerista não se tornou hegemônica pela resistência de outros jovens que se recusavam a se identificar com a normalidade imposta. Boa parte da astúcia de Goebbels com a propaganda nazista esteve na criação de uma imagem de juventude oposta às democracias liberais, envelhecidas e esgotadas após a 1ª Guerra Mundial. Com o fracasso da social-democracia da República de Weimar, a maioria absoluta da juventude alemã sequer tinha tido qualquer experiência de democracia, o que favoreceu fortemente o choque de gerações. Uma juventude militarizada, treinada para administrar um império em expansão, e que seria massacrada nas trincheiras da Guerra imediatamente depois da subida de Hitler ao poder, jamais chegaria plenamente à vida adulta. O projeto nazista, como ficou muito claro bem cedo, nunca foi um projeto para a juventude e, talvez por isso mesmo, nunca conseguiu domar ou direcionar como desejavam seus líderes todo o potencial de vida, violência e insatisfação que a juventude contemporânea traz consigo.
Esse ponto é importante. Se hoje a insatisfação juvenil ainda causa temor a políticos populistas e oportunistas (à direita ou à esquerda), não são poucas e menos sofisticadas as tentativas de transformar os rebeldes e radicais em bons cordeirinhos de um rebanho obediente. Por mais energia e inovação estejam contidas na cultura pop contemporânea – o rap e o funk das periferias, os saraus, os pancadões, a Internet etc. – essa mesma cultura inevitavelmente vem encharcada de conformismo consumista e puro, cego e chão materialismo. Essa é a realidade da juventude na sua arrasadora maioria, o predomínio da visão-de-mundo da classe média burguesa, centrada no consumo como via de satisfação pessoal e imediata.
Mas, que o mundo vai de mal a pior proclama-se desde o início dos tempos, dizia já Immanuel Kant, talvez o mais velho dos filósofos da era moderna. Essa é a crença bíblica, retomada ad nauseam: o mundo começou no paraíso para depois degenerar por ação humana. Muito mais nova e criticada é a crença contrária: o mundo teria originado mal, para depois melhorar continuamente. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, diz o filósofo.
Essa é a ideia do documentário Teenage, baseado no livro de Savage (EUA/Alemanha, dir. Matt Wolf, 2013). Por mais que as tendências regressivas da sociedade de consumo não deixem abortar a cadela do fascismo, sempre haverá jovens inconformados e indispostos a se ajustarem à normalidade social. Mas, e hoje, que parte da juventude alimenta essa potência antifascista e renovadora?
Talvez seja impossível dizer, sem ainda o devido distanciamento histórico. Mas, numa entrevista, Jon Savage lembra o seguinte:
tumblr_m9j1zce78h1ro1zebo1_500
E entre as partes mais legais, da hora mesmo, nóis, valeu! miugrau! do livro e do documentário estão nas histórias das jovens e garotas adolescentes que, de uma forma ou de outra, ousaram contestar não apenas seus papéis sociais, suas identidades recebidas, mas também a própria ordem social e política como um todo. Pode parecer difícil dissociar as duas coisas, mas de fato é muito mais difícil associá-las, como bem mostra a dinâmica da indignação tipicamente burguesa.

A libertação das mulheres da esfera estritamente privada está diretamente ligada à ocupação de postos de trabalho que ficaram vagos porque a maioria dos homens estava no morrendo nos fronts. Ainda que os ambientes e as práticas profissionais fossem extremamente masculinizadas e opressoras, o dinheiro em forma de salários próprios proporcionou uma libertação imensa.  Esse fato revolucionou completamente o mundo, transtornando velhas cabeças e costumes. Como diz Savage, “O que realmente chocava a América era o comportamento desenfreado das meninas adolescentes.” E ele conta inúmeras histórias de como esse choque aconteceu na Europa e nos EUA.

Uma dessas histórias é a de Sophie Scholl, participante da organização estudantil da Rosa Branca, também escolhida para ser personagem de outro filme, infelizmente ainda indisponível no Brasil (Sophie Scholl, Os últimos dias – alô, distribuidoras, acordem por favor!). Existisse hoje, o grupo da Rosa Branca (die Weiße Rose) se autodenominaria um coletivo de resistência pacífica, o que de fato foi. Começando as atividades em Munique, em 1942, seus membros distribuíram panfletos, grafitaram muros e espalharam ideias anti-nazistas até serem presos e assassinados pela Gestapo em 1943.
Outra história, que poderia parecer fútil perto da resistência política de Sophie Scholl, é a de Brenda Dean Paul, atriz britânica da época do cinema mudo. Brenda foi uma das mais inteligentes representantes da geração dos Bright Young People, “a cultura jovem mais visível da Grã-Bretanha na década de 1920”, exemplar do hedonismo juvenil espalhado pela Europa da época. Mas a fama de Brenda veio mais pelos escândalos causados pela sua liberalidade comportamental e sua terrível dependência das drogas. A Wikipedia diz que ela foi uma das jovens mais faladas de Londres de sua época. Mas Brenda, mesmo com todo hedonismo e toda consequente alienação que no fim tomaram conta dos Bright Young People, protagonizou conscientemente uma das mais fortes vontades juvenis: ela tomou conta da própria imagem, registrando como poucas, em sua autobiografia, o clima da época que anunciava o futuro.
0rra63p_vbs-zmdjh
“Uma nova camaradagem de jovens surgiu, uma independência, uma igualdade, que deu origem a um novo código de condutas sociais.” Essas palavras de Brenda Dean Paul baseiam a afirmação de Matt Wolff, diretor do documentário Teenage, baseado no livro de Jon Savage: “O teenager foi o resultado e a invenção das garotas adolescentes“.
.
Hoje, quando os jovens são censurados pelos adultos pela sua insistência nas selfies, quando as instituições e os movimentos sociais ainda barram ou menosprezam coletivos de jovens feministas, continuam vivas as histórias dessas garotas que se fortaleceram e ajudaram a fortalecer outras e outros jovens porque suas atitudes representam mais do que uma rebeldia sem causa, mas, antes, a necessária resistência contra as tendências regressivas da cultura, um espontâneo inconformismo que pode se transformar na efetiva força propulsora da vida. E esse valor simbólico é o mais importante, mais do que as normas da vida adulta em cada época conseguem entender.

O que aprender com o filme “As Sufragistas”?

O texto a seguir foi escrito quando o filme ainda estava em cartaz em São Paulo, ou seja, no final de 2015 e comecinho de 2016. Ficou guardado um tempo, passou o Dia Internacional dos Direitos das Mulheres, e só em maio foi publicado. Infelizmente, numa circunstância de recrudescimento da violência. Mas também de fortalecimento da luta. É por isso que ora vai publicado aqui.
Questionar os padrões de representação oferecidos pela indústria cultural é sempre uma boa maneira de pensar sobre nós mesmos.

Desejo uma boa leitura e deixo as cordiais saudações de costume.

* * *

“Procurar no cinema a ‘representação do passado’ é tarefa injustificada, porque ou tal representação é falsa ou totalmente maquiada (filmes comerciais) ou não pretende ser real (nos filmes de autor) mas, repito, simplesmente metafórica. Pois, sabe-se, o ‘sentimento da história’ é uma coisa muito poética e pode ser suscitado dentro de nós e comover-nos até as lágrimas por qualquer coisa, porque o que nos chama a voltar atrás é tão humano e necessário como o que nos impulsiona a andar adiante”.
Pier Paolo Pasolini. O sentimento da história. 1970

 

O filme As sufragistas (Suffragette, dir. Sarah Gavron, Reino Unido, 2015) começa avisando que vai contar a história, e não apenas uma história. Nos letreiros iniciais, o espectador lê que a radicalização do movimento das sufragistas na Inglaterra do começo do século 20 levou à troca dos argumentos pelas ações. O expectador vai ver na tela a história de algumas das mulheres que lutaram e morreram em favor do direito feminino de votar. O filme de fato inspira-se na vida de mulheres reais, mesmo que faça uso do recurso de apresentar uma personagem fictícia para aproximar o espectador da história tida como real.

 

 

Os problemas do filme começam aí. Roger Erbert, o famoso crítico de cinema estadunidense, teria certa vez dito que o importante não é o que o filme mostra, mas como ele mostra. As Sufragistas é um exemplo perfeito disso. Tomando muito de sua força do fato de que a plateia dificilmente pode ser contra a luta das protagonistas, o roteiro mostra praticamente todos os homens como antagonistas das mulheres, se não como representantes do mal: o marido da personagem principal é um banana, um fraco que não consegue evitar reproduzir o machismo de seu meio, mesmo sem qualquer convicção firme de seus atos; o patrão, além de explorador, é um estuprador misógino, para dizer o mínimo; os políticos e policiais, no máximo uns hipócritas presunçosos; o marido bonzinho da outra personagem é apenas aquele que colabora, agindo no fim das contas autoritariamente, ainda que com boas intenções; e as mulheres que não são feministas, bem, quanto a elas a plateia fica se perguntando: “mas como podem?” E, se a personagem principal é o lado do bem, a identificação da plateia é imediata e dificilmente poderia ser diferente.

 

 

O chavão narrativo funciona e é bem trabalhado por uma diretora que maneja uma câmera muito segura, prefere planos fechados de modo a tornar a plateia íntima e, não menos importante, dirige atrizes excepcionais (especialmente Carey Mulligan, no papel principal de Maud, presenteia a plateia com uma interpretação estupenda). Tudo isso dá ao drama social um tom particular, como se ela dissesse: este problema também é teu, é a tua, a nossa vida. A dicotomia bem/mal tem ainda outra função de ser: ao mesmo tempo em que captura os sentimentos da plateia, o filme conecta de maneira sistêmica todos os conflitos femininos contra a opressão patriarcal – a opressão sexual está ligada à econômica, que está ligada ao moralismo da sociedade, que está ligado à maternidade, que está ligado à dependência econômica etc.

 

 

A certa altura, Maud pergunta ao marido: – “Se tivermos uma filha, que vida ela terá?” – “A mesma que você”, responde ele. Quer dizer, o marido reproduz o status quo social dentro de casa. Nisso, o filme não deixa dúvidas ao espectador: desde o início, o marido explora a mulher (toma conta de seu salário), a voz dele silencia a dela (interrompe-a mais de uma vez), reproduzindo os padrões sociais de dominação sem ter plena consciência do que faz. Mesmo assim, é difícil a ela romper, pois o afeto é forte entre eles. Não há dúvidas: é uma denúncia do machismo e ao mesmo tempo uma homenagem às mulheres, sua maneira de ver o mundo, sua… feminilidade? Esse é justamente o problema. Parafraseando o poeta, na força do filme está sua fraqueza.

 

Ao mostrar a luta das sufragistas, o filme na verdade apaga a história que quer contar, pois o que mostra condiz com a atual crítica feminista, e não com o que foi o movimento sufragista. O filme faz questão de mostrar que até mesmo mulheres que trabalhavam para o poder instituído condoem-se do drama das sufragistas, ignorando completamente as razões e motivações das que permaneceram indiferentes ou opositoras ao movimento sufragista, sequer criticando-as, se fosse o caso. Não que um filme – qualquer narrativa – precise ser fiel à história para ganhar legitimidade – a boa ficção independe dos fatos. Mas, no caso do filme, vale a pena problematizar a relação entre ficção e fatos histórico.

women20and20child20in20mill20behind20machine_1Engels identificou nas péssimas condições de trabalho das mulheres operárias nas fábricas londrinas a raiz da desumanização da vida familiar para as classes pobres urbanas.

Vamos partir da sequência já citada. Para entender o quão difícil é julgar o valor da ficção pelo da história (mesmo porque a fronteira entre as duas não é pacificamente definível), basta lembrar o ganho de independência e potencial revolucionário que os métodos anticoncepcionais proporcionaram às mulheres: a vida dos filhos não está destinada a ser a cópia fiel da dos pais, ao contrário do que o marido de Maud diz. Um pequeno diálogo bem filmado evidencia o que levou séculos para amadurecer na consciência das pessoas. O controle da natalidade possibilitou às mulheres, principalmente às operárias, ter novos valores, experimentar novos arranjos familiares e alimentar outras expectativas. Isso é tão mais importante se lembrarmos que durante muito tempo no século 20, e mesmo até hoje, grande parte da população feminina mundial ainda é obrigada a casar como uma forma de garantir ascensão ou mesmo segurança social.

Vale lembrar também o quanto a industrialização afetou a vida feminina. Nas sociedades agrárias, não só o lugar de trabalho era o mesmo que o da vida familiar como havia esferas muito bem determinadas de poder feminino, nas quais a interferência masculina era considerada ilegítima. Se as mulheres não podiam participar da vida pública, da política propriamente dita (daí a ironia de comédias como Lisístrata, de Aristófanes, ou A megera domada, de Shakespeare), ao menos em casa elas tinham seus domínios bem delimitados e respeitados – a elas cabia a educação das crianças e a administração da comida, funções essenciais nas sociedades agrárias durante milênios. A industrialização acabou com tudo isso, tornando a vida das mulheres nas cidades muito difícil em termos absolutamente diferentes.

O filme mostra só um aspecto da ascensão das mulheres à vida pública. A história da radicalização do movimento sufragista está bem representada no filme, principalmente pela representação das ações – que hoje seria facilmente desqualificada como terrorista, imaginem por quem – das militantes do Sindicato Social e Político das Mulheres (Women’s Social and Political Union, ou WSPU), organização que passou a incentivar ações de desobediência civil quando ficou claro que discursos no parlamento não bastariam para mudar a situação – ações, e não palavras, é o bordão de Emmeline Pankhurst, fundadora do WSPU (vivida por Meryl Streep no filme, em participação especial).

Com isso, mostra que as mulheres conquistaram a atenção pública como pessoas, com aspirações e interesses próprios, a custo de muito sacrifício. Somente lutando por seu lugar na vida pública conseguiram as mulheres ter plenos direitos sobre suas vidas privadas, recuperando sua autonomia dentro das famílias – a história de como Maud foi separada de seu filho sugere essa relação. No entanto, se o filme mostra a força e a determinação das sufragistas contra a violência masculina, ele peca ao esconder que essa mesma força evidenciava os próprios limites do movimento sufragista. Quanto mais forte, mais limitado ele se tornou. E o filme também: quanto mais faz a plateia se identificar com a luta e os anseios da protagonista, mais fraco se torna.

O movimento sufragista é mostrado no filme como um movimento totalmente autônomo, de modo a realçar o protagonismo feminino como um fenômeno que ultrapassou as barreiras das classes sociais quando as mulheres se tornaram conscientes de si. Isso fica claro pelo envolvimento sincero entre a pobre lavadeira Maud e a rica Mrs. Houghton (Romola Garai), mas é uma mentira histórica. O movimento sufragista britânico nunca foi totalmente autônomo e independente como o filme quer mostrar, e muito menos a luta sufragista transcendeu as rígidas barreiras classistas da sociedade vitoriana (a Rainha Vitória morreu em 1900). Ao contrário, a maioria das sufragistas jamais entenderam que teriam êxito isoladas, levantando apenas a bandeira do direito ao voto feminino. O apelo do movimento sufragista era muito pequeno, uma vez que a maioria absoluta das mulheres, na Inglaterra e principalmente fora dela, ainda vivia em condições terrivelmente mais precárias que as muitas operárias londrinas (lembremos que o Império britânico naquela época se estendia praticamente por todo o globo, de uma maneira ou de outra). Esse é um dos fatores que explica a oposição sofrida pelas sufragistas por parte de muitas  mulheres que não se reconheciam nas reivindicações urbanas e burguesas das sufragistas (porque o sistema de eleição burguês é, de fato, muito pouco representativo, como não nos deixa esquecer a atual composição do Congresso Nacional). Rosa Luxemburgo, por exemplo, não via necessidade de levantar uma bandeira especificamente feminista, ao menos não nos termos do movimento sufragista, por considerar que a luta revolucionária era muito mais ampla e fundamental.

Contudo, é verdade que os movimentos operários e os sindicatos – socialistas, anarquistas ou outros – viam as mulheres como competidoras a serem eliminadas do mercado de trabalho. Apesar de ganharem muito menos e seus salários serem sempre considerados como complementares às rendas dos homens (maridos, pais ou irmãos), o fato é que muitas mulheres empregadas significava mais lucro para os patrões e menos oportunidades para os homens. Isso impunha às mulheres engajadas nas lutas operárias mais um pesado fardo, além de todos os outros, que era conquistar seu próprio lugar na luta revolucionária. Para essas mulheres, o direito de participar da política burguesa pelo voto só podia parecer algo muito pequeno e secundário, uma luta que só fazia sentido às mulheres que já pertenciam às classes burguesas – e a trajetória de Rosa é a exceção que confirma a regra daquele contexto.

Apenas posteriormente ficou clara a especificidade da luta feminista, dado o machismo arraigado na esquerda. Pensemos, então, com a história: se mesmo a resolução dos problemas dos operários não seria necessariamente um ganho para as operárias (quem dirá para as mulheres em geral), o que um lugar no espaço público da ordem burguesa imperialista e patriarcal significaria? Mas essa não é uma pergunta feita pelo filme. Ao contrário: partindo acriticamente do direito ao voto como pressuposto de valor absoluto, o filme mostra a luta das sufragistas muito bem acolhida igualmente por mulheres pobres operárias e mulheres burguesas pertencentes às classes mais favorecidas – o rechaço das operárias à burguesa Mrs. Houghton é abandonado no começo do filme para nunca mais voltar à tela.

O fato é que muitas mulheres se envolveram nas lutas socialistas e anarquistas ao perceberem que apenas o direito ao voto, uma vez conquistado, dificilmente resolveria o problema da maioria das mulheres pobres do mundo. Mesmo assim, as bandeiras dos trabalhadores não passaram às prioridades das sufragistas, que permaneceram mais preocupadas com o direito ao voto, o acesso ao ensino superior e a igualdade política formal, numa postura tipicamente burguesa de desconsiderar as dificuldades reais em busca de um ideal pretensamente isento e universal. Não à toa, quando a Primeira Guerra Mundial começou, o movimento sufragista praticamente desapareceu na Inglaterra, sufocado pelo nacionalismo, enquanto que o direito ao voto foi um dos direitos conquistados pelas mulheres na Rússia, como consequência da Revolução socialista.

E, sempre vale lembrar, quando Margareth Thatcher se tornou Primeira-Ministra da Inglaterra, a onda neoliberal ganhou força e todos os trabalhadores – homens e mulheres – sofreram as consequências amargas do tal ajuste fiscal, dentro e fora da Inglaterra, inclusive com a consequência de reforçar muitas das antigas coerções sociais do patriarcado imperial. Até hoje os salários das mulheres são significativamente menores do que os dos homens para os mesmos ou equivalentes cargos; e o salários das mulheres negras é ainda muito menor, quando conseguem os mesmos ou equivalentes cargos. Qualquer semelhança com algum contexto conhecido do leitor não é mera coincidência.

Por isso, além de não mostrar o contexto histórico em que se deu a luta das sufragistas, o filme chega mesmo a falseá-lo, dando a impressão de que a luta das sufragistas não só conseguiu transpor barreiras de classe como ainda conseguiu se manter independente de outras lutas sociais da época. Como o filme aprofunda as dores da personagem principal, a plateia não consegue não se emocionar com o sofrimento dela. Essa identificação, porém, oblitera o senso crítico e faz com que aceitemos sem questionar tudo o que o filme nos mostra. Na nossa época atual, movida a excitações virtuais, o filme não falha em dar aos expectadores o tanto de melodrama esperado. É como se ele nos dissesse: “afinal de contas, que espécie de bolsonista, ser torpe ou machista canalha é você que pode ser contra participação a igualitária das mulheres na esfera pública?” E, de fato, é impossível ser contra! Isso, porém, não significa que uma narrativa qualquer seja válida enquanto tal apenas por ser feminista. Pois, se o nacionalismo é o último refúgio dos canalhas, o sentimentalismo no cinema é o primeiro recurso dos cínicos.

O ponto é simples: nenhum filme pode ser visto como um retrato fiel de uma época histórica – principalmente os que se pretendem históricos, como As sufragistas. Dito isso, parece-me muito mais profícuo ver o filme como um juízo sobre a história, quer dizer, como uma avaliação do que aquela luta e aquele momento históricos representam para nós, hoje. Sem necessariamente deixar de apresentar uma perspectiva burguesa e centrada num protagonismo historicamente questionável, o filme pode mostrar algo de proveitoso, pois de fato indica que as conquistas de hoje não se deram sem muita luta das gerações anteriores – o que também pode ser uma lição para o futuro: nada se conquista sem luta.

Uma pena a escolha da perspectiva emotiva eclipsar o contexto das lutas reais: por mais defensável que seja o seu conteúdo, o filme não está livre de certo cinismo, ou melhor, uma má fé em sentido sartriano: tentando se fazer passar como história de lutas reais, o filme conquista a plateia silenciando totalmente as vozes que de fato deram ao feminismo de todo o século 20 muito de sua força. Onde estão as mulheres operárias e socialistas? Em que as pautas anti-imperialistasantibélicas de 1914 contribuíram para a emancipação feminina? Nada disso o filme mostra; ao contrário, faz questão de não mostrar.

Essa é a escolha que faz o filme andar no fio da navalha. E, como filme, tem de ser analisado justamente por esse aspecto: como constrói sua narrativa? O que diz e o que não quer dizer? E, daí, o que ela tem a nos dizer, ou seja, o que a luta das sufragistas significa para nós hoje?

O mais importante da escolha narrativa feita está justamente no ponto mais fraco do filme, que é também o seu mais forte: Maud. Ao fazer a plateia se identificar com a personagem principal, forçando a mão no sentimentalismo (as imagens de intimidade, a ênfase no isolamento…), a aposta do filme é mostrar o quanto as escolhas das mulheres daquela época foram dramáticas para elas e decisivas para nós. Seu legado é imensurável e sob muitos aspectos ainda está aberto, no sentido de que cabe a nós levá-lo adiante. Se visto assim, as contradições do filme tornam-se reveladoras – tanto do que o filme pretende esconder quanto do que é capaz de revelar sobre nossos tempos atuais: qual a contradição entre ser feminista e ser de direita? Ou só se pode ser feminista à esquerda? Por quê?

Maud começa o filme dizendo que não é uma sufragista – no começo, ela é uma dedicada mãe, submissa esposa e competente operária. Um pouco antes da metade, ela se declara às autoridades públicas uma convicta sufragista. Termina o filme engajando-se na mais ousada ação feminista da época, que resultou na morte de Emily W. Davison (as sequências originas da época podem ser vistas no YouTube! Uma análise delas pode ser vista aqui: https://www.youtube.com/watch?v=-W_URTWjgR0).

O filme, então, pode ser lido na chave dos questionamentos de Simone de Beauvoir: o que é ser mulher? Ninguém nasce mulher, torna-se. E se levarmos o percurso de Maud a sério (talvez mais a sério do que o próprio filme é capaz…?), ser mulher é tornar-se atuante na esfera pública, recusar a limitação à esfera exclusivamente privada e agir livremente em domínios ainda hoje moldados pelo poder masculino, com o qual as mulheres mantêm relações não apenas de ordem político-econômica, como patrão/empregado, mas também afetivas, de dependência mútua e perene – enquanto existirem homens e mulheres, haverá diferenças e afetos também.

pixel

Se a liberdade, como dizia Rosa Luxemburgo, é sempre a liberdade do outro, daquele que pensa, sente e age diferente, então nenhum vínculo entre homens e mulheres pode servir para justificar a submissão econômica, a desigualdade de oportunidades e direitos políticos, a exploração sexual a que milhões de mulheres ainda são submetidas pelos homens, independente das diferenças entre classes sociais e credos políticos. Por isso, ainda vale dizer que se há inúmeras formas de injustiça, a justiça permanece una. Eis porque é tão mais imprescindível construirmos outra história, outras narrativas, outras imagens.

 

“You! hypocrite lecteur!—mon semblable,—mon frère!”

 

12662584_1200443449984232_6160138296030975312_n

“Para compreender os media e a tecnologia, é necessário ter em mente que a novidade do feitiço do aparelho ou de uma extensão de nossos corpos vêm acompanhados de uma narcose ou de um entorpecimento para a nova área [perceptivo-cognitiva] ampliada. Críticas aos relógios só começaram a surgir quando a era da eletricidade mostrou a incongruência do tipo mecânico de tempo. No nosso século elétrico, a cidade que segue os horários mecânicos mais parece um conglomerado de sonâmbulos e zumbis, como os que conhecemos pela primeira parte do poema de T. S. Eliot, The waste land (a terra devastada).”

Marshall McLuhan. Os meios de comunicação como extensões do homem (1964), cap. 15: “Relógios: a fragrância do tempo”, p. 171 (Ed. Cultrix; ousei modificar um pouco a tradução de Décio Pignatari).

13133298_1268428676519042_1123127494950738470_n

“It is a necessary approach in understanding media and technology to realize that when the spell of the gimmick or an extension of our bodies is new, there comes narcosis or numbing to the newly amplified area. The complaint about clocks did not begin until the electric age had made their mechanical sort of time starkly incongruous. In our electric century the mechanical time-kept city looks like an aggregation of somnambulists and zombies, made familiar in the early part of T. S. Eliot’s The Waste Land.”
Marshall McLuhan. Understanding Media: The Extensions of Man (1964), ch. 15: “Clocks: The Scent of Time”, p. 149.

 

Escândalos e simulações

Depois de uns dias, edito esta publicação para um esclarecimento.
Usei o texto para uma aula do curso de jornalismo, na semana passada, cujo tema foi a teoria dos simulacros de Baudrillard. Como estratégia problematizadora ou sensibilizadora, usei um trecho do filme Um dia de fúria (Falling down, dir. Joe Schumacher, EUA, 1993), a famosa sequência da lanchonete.

um-dia-de-furia2

Michael Douglas no papel de William Foster, personagem que detesta simulacros. Clique na imagem para ver a sequência.

 Depois de mostrar a sequência, pedi aos estudantes que identificassem um erro evidente no que escrevi. É um erro intencional, escrevi com o intuito de que eles o identificassem depois de conhecerem a teoria. Numa classe de uns 40 estudantes, apenas uma aluna identificou. O erro é repetido 3 vezes, evidenciado por uma imagem e mesmo assim passou batido.

E qual é esse erro? Janaína Paschoal não é deputada. Ela é professora da USP, autora do pedido de Impeachment da presidenta Dilma Rousseff, e não é deputada. Um leitor do blog indicou o erro, mas meus alunos não. Alguns apontaram que a Avenida da foto lá no fim não é a 23 de Maio. De fato, mas eu não quis dizer que era, a legenda não é para identificar a Avenida. Mais um ponto para a teoria de Baudrillard.

É isso. Sem mais, segue o texto tal e qual. Cordiais saudações.

* * *

O que um escândalo político revela? Por que os grandes media difundem tantas imagens de escândalos? Celebridades têm suas vidas pessoais expostas em escândalos. Reputações são destruídas. Políticos desmascarados. Filho de FHC com a jornalista da Globo. Mensalão. Impeachment. Operação Lava Jato. Panama papers. Escândalo após escândalo, num rol interminável, ficamos estupefatos diante de cada um e no entanto sempre há sede para mais escândalos.

            Para Jean Baudrillard, nenhum escândalo é o que parece, tampouco revela alguma verdade oculta depois de exposto. Melhor, a verdade mais importante não é a revelada pelo escândalo, mas aquela que todos os escândalos ocultam ao serem descobertos. Hã?

1442702585528
Deputada federal Janaína Paschoal, em foto publicada no jornal O Estado de São Paulo [http://migre.me/trvcr]. Co-autora do pedido de Impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a deputada tem sido chamada de “musa do Impeachment” por certos media. Recentemente, em evento na USP, fez um discurso bastante polêmico,  o qual foi imediatamente relacionado pelo discurso machista a um suposto “descontrole hormonal” da deputada. A lógica da simulação e do simulacro pode ajudar a entender quais ações políticas efetivas restam obliteradas por essas mediações discursivas.  

            Em seu livro Simulacros e simulação, Baudrillard analisa a lógica da cultura mediática dos escândalos. Para ele, não há mais distinção entre um real objetivo e factual e as imagens e representações ficcionais, vez que nossa realidade é construída culturalmente. Na verdade, ele defende de maneira muito radical que o próprio real é uma simulação, um efeito de real prévio a toda facticidade, um modelo representativo que tomamos por real, mas que não é real, é apenas um simulacro de real. Real, mesmo, aquele, duro, concreto, irredutível à nossa vontade, esse perdeu-se há muitas eras. E, se as simulações são “reais” sem nenhuma base ou fundamento original fora delas mesmas, então é muito mais complicado distinguir o que é ou não um simulacro. Uma simulação não se distingue de um real, tampouco ela se disfarça de real, mas é, antes, algo que elimina o real e assume seu lugar. Como, por exemplo, uma criança que simula uma doença para não ir à escola – ela não está doente, mas tem febre, vomita, fica pálida etc. Ou uma gravidez psicológica, na qual a barriga da mulher cresce mas sem que haja feto. Simulações e simulacros não são meras imitações, mas têm todas as características do real que fingem ser e que não existe de fato.

vivien

Vivien Leigh como Blanche DuBois, personagem da peça Um bonde chamado desejo, de Tenessee Williams, na adaptação para o cinema dirigida por Elia Kazan, em 1951. Blanche é uma mulher que tenta a todo custo esconder a idade. Ela mescla realidade e imaginação, recusando a primeira em nome da segunda, simulando uma aparência e uma personalidade fantasiosas para ocultar problemas do passado. Apesar de ter sido escalada para o papel por ser uma estrela já consagrada, Vivien Leigh foi eclipsada por Marlon Brando, então praticamente desconhecido em seu segundo papel no cinema. O filme o transformou imediatamente em um dos principais astros de Hollywood. Sabe-se que Tenessee Williams se desentendeu com Elia Kazan por causa disso – ele preferia que a tônica continuasse na personagem feminina, mas Kazan, percebendo a força dramática de Brando, teria filmado de maneira a potencializar sua imagem na tela.

Mas o que ele chama de “o real” é o mesmo que pensamos? É comum e generalizada a tendência de distinguir o que acontece no mundo dos fatos do que acontece apenas na nossa imaginação. De certa maneira, sabemos que o que vemos acontecer na TV não é exatamente o mundo real, mas uma representação dele. Mas Baudrillard faz uma consideração em sentido contrário. Ele usa o conceito de “simulação” para definir a ocorrência de algo real que não é definido pela sua diferença com o imaginário, mas pela sua própria natureza imaginária. A realidade dos simulacros e das simulações é uma hiper-realidade: a foto do sanduíche no painel luminoso é mais gostosa do que o próprio sanduíche, é hiper-gostosa, atiça nosso desejo, mobiliza nossa vontade de comer que nada tem a ver com fome, pois quanto menos fome sentimos mais vontade temos do sanduíche da foto. A hiper-realidade é mais real do que o real porque, apelando aos nossos desejos de consumo, formata nosso desejo com o modelo de realidade reproduzido infinitamente pela ordem do capital. Uma simulação é, assim, como um ensaio de teatro: um acontecimento é ensaiado no palco para representar um real, mas aquilo que é ensaiado no palco é uma ficção que não necessariamente tem origem numa realidade específica ou nem menos se baseia em algum fato concreto. E, no entanto, ao vermos essa simulação no palco, identificamo-nos com ela. Como Blanche DuBois, queremos muita magia, queremos um nada de real. Essa nossa vontade de nada de real é satisfeita pelos simulacros da sociedade de consumo.

baudrillard-3

Placa na entrada da Disneyland com os dizeres: “Aqui você deixa o hoje e entra no mundo do ontem, do amanhã e da fantasia”.

Baudrillard dá dois exemplos de simulacros hegemônicos em nosso mundo, a Disneylândia e o escândalo Watergate. Resumidamente, a Disneylândia é o grande mundo hiper-real que permite às pessoas purgarem seu desejo de sonho reprimido pelas duras engrenagens do trabalho sob o domínio do capital. O grande sonho não é a Disneylândia, é a América, o grande sonho que nunca se realiza e se dissolve na fragmentária e infinita realidade dos objetos de consumo. Ela existe para nos fazer pensar que é possível ainda realizar a América – ali, podemos sonhar, como se não vivêssemos vidas falsas fora dali.

Por ora, deixemos de lado a Disneylândia e prestemos atenção a Watergate. Talvez a análise de Baudrillard nos sirva para pensar algo sobre os nossos recentes escândalos políticos.

watergate cartoon

Charge de 1972, publicada no The Washington Post, ironizando as ilegalidades no financiamento da campanha de reeleição de Richard Nixon, do Partido Republicano. Os Democratas alegavam que o judiciário e a Casa Branca não conseguiriam estavam comprometidos com as falcatruas e exigiam uma comissão de inquérito independente. O titulo da charge é “There’s no need for an independent investigation–We have everything well in hand [Uma investigação independente não é necessária, temos tudo sob controle.].” O desenho mostra cada um dos investigadores carregando sacos de dinheiro – fundos de Nixon, doações de bancos, dinheiro provindo de corrupção e desvio de verbas públicas.

Segundo a lógica dos simulacros, Watergate não é um escândalo real, mas uma simulação cuja função é fortalecer outro simulacro: desmascarar Nixon é fortalecer a instituição da presidência dos Estados Unidos. Com isso, oculta-se outro escândalo muito maior, o da “crueldade instantânea” do capital, “a sua ferocidade incompreensível, a sua imoralidade fundamental”, inadmissíveis a toda moralidade ainda baseada em valores iluministas. No entanto, acusar o capital de imoral é inócuo, uma vez que o capital não tem contrato algum com a sociedade e está se lixando para códigos e regras de conduta – sua voracidade é a única coisa que lhe interessa, pois “é uma empresa monstruosa, sem princípios, um ponto, nada mais.” O que o modelo dualista ordem/desordem, moral/imoral, capital/anti-capital oculta, portanto, não é o acontecimento escandaloso do gozo do capital e seu desprezo pela sociedade, mas o fato de que nós gozamos com o capital. Afinal, não é a força da lei americana que possibilita a guerra do Vietnã? E não é essa mesma guerra a condição de sustentabilidade da sociedade de consumo – não é bom poder comprar um jeans Levi’s a bom preço? Onde está o escândalo – na própria guerra ou na nossa satisfação de consumo que ela proporciona?

Untitled

“Watergate não é um escândalo, é o que é preciso dizer a todo custo, pois é o que todos tentam esconder […]. Não é um escândalo a denunciar segundo a racionalidade moral ou econômica, é um desafio a aceitar segundo a regra simbólica.”

O escândalo, então, serve para preservar e reestabelecer a ordem, e é, portanto, não um escândalo genuíno, mas uma cobertura para o escândalo mais profundo e radical, que é a manutenção da ordem do capital, esse sim, um escândalo oculto e não divulgado. O escândalo de Watergate serve como uma ilusão: a cega e desgovernada força do capital pode ser enfrentada e detida. Com toda a realidade econômica no limbo da irresponsabilidade do capital, usamos Watergate para imaginar que o mal pode ser descoberto e a justiça pode prevalecer sobre ele. Mas, pensando dessa maneira, estamos apenas cegos à verdadeira força destrutiva do capital, que avança com ou sem Nixon. Como a Disneylândia, a lógica do escândalo serve para criar distinções ilusórias e dualistas que ocultam o movimento da fita de Moëbius sobre a qual nos equilibramos, alimentando a ilusão de que alguma ordem alternativa pode ser criada. Vivemos uma hiper-realidade que se nutre de si mesma – um escândalo remete a outro escândalo que remete a outro e assim sucessivamente, numa circularidade auto-referencial e distorcida.

moebius-ants

Desenho de uma faixa de Moëbius por M.C. Escher. Matematicamente, a faixa de Moëbius tem a propriedade de ser não-orientável, quer dizer, não é possível escolher um ponto vetorial de orientação na sua superfície. Segundo a lógica de Baudrillard, nós somos as formigas.

A tese sobre Watergate radicaliza a ideia de que o real é sempre construído – quando nascemos, o mundo já está pronto. Ao entrarmos no mundo real, já começamos a pensar com ideias, representações, códigos significantes feitos por outros, para outra realidade que não a nossa. Tudo isso herdamos sem sequer poder questionar. Como construção simbólica, o real é sempre um imaginado, no qual falsamente cremos, insistindo em ser ele uma realidade palpável e efetiva quando na verdade é um tecido de signos. Mas os signos também são efetivos, aliás, são o que há de mais efetivo. É justamente essa efetividade que perdemos quando adentramos a ordem das simulações, pois uma simulação está além da verdade e da falsidade.

Para compreender essas afirmações, é necessário recorrer a outra obra de Baudrillard, seu livro Sistema dos objetos. Em algum ponto da história, diz ele, os objetos tornaram-se signos e os signos tornaram-se objetos. As trocas sociais, portanto, não são apenas trocas entre objetos, como um primitivo escambo, mas trocas simbólicas, trocas de signos por signos, de significações por significações. E, como os signos sempre carregam uma “mais-valia de significação”, quer dizer, sempre dizem algo mais do que a mensagem intencionada (digamos assim), a troca entre os signos nunca é exata, sempre há algo que se ganha e algo que se perde (esse ponto também Umberto Eco defendeu à exaustão: transações semióticas sempre se dão num jogo de perdas e ganhos).

roy-lichtenstein-sunrise_original

Roy Lichtenstein

Para Baudrillard, o que perdemos é sempre o referente e o que ganhamos é sempre uma rebarba significativa, uma gordura de significação, um excesso simbólico. Isso aumenta cada vez mais nossa distância de objetos reais, mesmo que lidemos cotidianamente com eles. Nossas relações com os objetos reais estão cada vez mais mediadas por outros processos e interesses simbólicos que são, eles mesmos, constructos históricos. Nesse sentido, as mediações simbólicas só são arbitrárias por serem artificiais, melhor dizendo, são o resultado espontâneo de um processo cultural, mas não no sentido de serem impostas por uma decisão consciente e voluntária. Não há vida fora do processo de construção histórica dos signos e das mediações culturais – a própria cultura não é outra coisa que mediação semiótica. A troca simbólica, então, passa a ser a forma de realidade social dominante ou hegemônica, se não a única.

graffitis-no-maau-museu-aberto-de-arte-urbana-sc3a3o-paulo-sp-2012-2

Uma cena comum na cidade de São Paulo, a vida anda em meio ao graffiti, de carro ou a pé, ou ainda de bicicleta, mais recentemente. São Paulo possui a maior galeria de graffiti a céu aberto do mundo, os muros da Avenida 23 de Maio.

A realidade dos signos se impõe sobre todas as outras quando os signos se livram dos vínculos sociais, emancipando-se das amarras que os prendiam ao mundo real. Por ser fabricada, a conexão dos signos com o mundo é uma conexão intencionada em vista de certos propósitos. Na lógica dos simulacros, ela é uma pretensa conexão real, já que os objetos fabricados para consumirmos significam algo acrescentado à nossa realidade que vai muito além de sua função específica, seu valor-de-uso. A gordura significativa é o que mais importa: sucesso, conforto, segurança, bem-estar, beleza etc. Desse modo, os produtos não significam o objeto e a função em si, mas todo o complexo de ideias a ele atribuídas. Por isso, é a significação que produz efeitos no real, e não o contrário: o real não é causa da significação, é um mero efeito dela. As imagens produzidas do mundo influem nas condutas, nos processos sociais, na produção e na reprodução material da vida. A realidade, então, não é mais o polo oposto da ficção, é ela mesma uma representação e uma ficção.

Untitled2

Recentemente, a autora Naomi Klein publicou uma severa crítica ao capitalismo orientado ao consumo de marcas em sem livro Sem Logo. Ao fim, ela distingue a cidadania do consumismo, defendendo uma versão globalizada da primeira como alternativa ao modelo de globalização hegemônico a partir dos anos de 1990.

A análise de Baudrillard parece não deixar espaço para resistir, quem dirá romper o fluxo das simulações. De fato, ou estamos fora do processo, como se deuses fôssemos, ou estamos dentro dele e fazemos parte desse grande ensaio simulatório. Mas, se não podemos nos por no lugar de Deus, podemos fincar pé no palco e arbitrariamente contrapor aos simulacros a sua própria imagem invertida, refletindo o reflexo, como um espelho diante do outro. No nosso mundo, a simulação funciona de modo a erodir os referentes reais distintos das suas representações. Se um mundo real não existe objetivamente, nossa única alternativa é assumir um papel ativo no entrelaçamento dos fios desse tecido simbólico. Se a função da hiper-realidade é esconder seu próprio funcionamento, seu modus operandi, é só fincando o pé nesse processo que podemos evitar sermos totalmente engolfados por ele. Isso quer dizer que temos de nos transformar em consumidores compulsivos, porém “críticos”? Pessoalmente, prefiro dizer que é possível construirmos mediações imprevistas no modelo herdado, com o modelo herdado – entretecendo mediações inusitadas ou mesmo proibidas, estabelecendo mais trocas simbólicas, buscando complexificar canais dados como naturais e simples, e, com isso, talvez consigamos mostrar os limites dos discursos estabelecidos. Se conseguirmos fazer isso, talvez não encontremos saída da teia, mas ao menos teremos tentado forçar as linguagens contra seus próprios limites, ganhando uma maior compreensão do que antes passava despercebido e tendo maior consciência da linha de separação entre o dito e o não-dito.

Na descrição de Baudrillard, o real apenas finge ser autêntico, simula ser uma realidade estável, objetiva e originária, quando de fato nada mais é do que o produto das trocas simbólicas entre signos na cultura. É imoral FHC ter um filho com a jornalista da Globo enquanto casado. O mensalão é o maior caso de corrupção no Brasil. O Impeachment não tem base legal. A operação Lava Jato é apartidária e necessária. O que são os Panama papers? Janaína Paschoal é a musa do Impeachment. Descartadas as equivalências entre esses simulacros, o exesso de gordura vai nos exigir muito exercício para ser queimado.

Sobre imagens de violência e sensacionalismo

McCullin

 

A foto foi tirada por Donald McCullin durante a guerra do Vietnam. É citada no texto a seguir, escrito por John Berger em 1972. Se publico aqui uma cometida tradução dele, é por julgar que não envelheceu mal. Provavelmente, vários leitores pensarão em Sebastião Salgado ao lerem o texto. Eu pensei, mas despensei em seguida. São diferentes modos de ver. Um problema de semiótica peirciana, um problema wittgensteiniano: não tomar nossas ideias pelas coisas, ou vice-versa.

Vivemos um mundo repleto de imagens por toda parte – estáticas, em movimento, planificadas, 3D, em telas, em superfícies, nas ruas – em toda parte.  Nossa percepção e situação são moldadas imageticamente, a todo instante – a imersão proporcionada pelas telas digitais molda nossa geo-eco-percepção de maneiras como não suspeitamos – no caso da visão: vemos as imagens pensando ver o mundo, sem nos esforçar por questionamento algum. É claro que não é possível ver o mundo sem qualquer mediação – mas sequer suspeitamos das imagens que recebemos como naturais. Suspeitar das imagens, algo de que pouco nos damos conta, por isso mesmo imperativo.

Tirem suas próprias conclusões.

Fotos de agonia

John Berger. Understanding Photograph. Edited and introduced by Geoff Dyer. New York: Aperture, 2013, pp. 33-35.

 

As notícias do Vietnã não davam manchetes nos jornais dessa manhã. Eles simplesmente relataram que a força aérea americana persegue sistematicamente sua política de bombardeamento ao norte. Ontem foram 270 ataques.

Por trás desse relato há um acúmulo de outras informações. Anteontem, a força aérea americana lançou o ataque mais pesado deste mês. Até agora, mais bombas foram jogadas neste mês do que durante qualquer outro período anterior que se compare. Dentre as bombas jogadas, estão as super-bombas de sete toneladas, cada uma delas capaz de achatar uma área de mais ou menos oito mil metros quadrados. Junto com as bombas grandes são jogadas outras tantas, de vários tipos, bombas de pequenas anti-pessoas. Uma dessas é cheia de farpas de plástico que depois de rasgarem a carne e se alojarem no corpo não podem ser detectadas por raio X. Outro tipo é chamado de Aranha: uma pequena bomba, como uma granada, com antenas quase invisíveis de trinta centímetros que, se tocadas, agem como detonadores. Essas bombas, distribuídas sobre o chão onde já foram dispostos outros explosivos maiores, são jogadas para explodir os sobreviventes que correm para apagar as chamas já incendiadas ou que vão ajudar os já feridos.

Não há imagens do Vietnam nos jornais de hoje. Mas há uma foto tirada por Donald McCullin em Hue, em 1968, que poderia ter sido impressa com os relatos da manhã de hoje. Ela mostra um homem de cócoras, com uma criança nos braços; ambos estão sangrando em profusão com o sangue negro das fotografias em preto e branco.

Mais ou menos de um ano pra cá, tornou-se normal para certos jornais de circulação em massa publicarem fotos de guerra que teriam sido consideradas, antes, chocantes demais para serem publicadas. Alguém talvez explique esse desenvolvimento defendendo que esses jornais perceberam que uma grande parte de seus leitores estão agora cientes dos horrores da guerra e querem que a verdade lhes seja mostrada. De outra parte, alguém poderia defender que esses jornais acreditam que seus leitores já se acostumaram com imagens violentas e, então, competem agora em termos de um sensacionalismo cada vez mais violento.

O primeiro argumento é idealista demais e segundo é exagera na transparência de seu cinismo. Os jornais atualmente trazem fotos violentas de guerra porque o efeito delas, exceto em raros casos, não é o que antes se presumia ser. Um jornal como o Sunday Times continua a publicar fotos chocantes sobre o Vietnã ou sobre a Irlanda do Norte ao mesmo tempo em que apoia as políticas responsáveis pela violência. É por isso que temos de perguntar: que efeito têm essas fotografias?

Muitas pessoas defenderiam que essas fotografias nos lembram, de maneira chocante, da realidade, a realidade vivida, por trás das abstrações da teoria política, das estatísticas de mortes ou dos noticiários diários. Essas fotografias, poderiam continuar a dizer, são impressas sobre a cortina preta que esconde o que escolhemos esquecer ou o que nos recusamos saber. De acordo com eles, McCullin funciona como um olho que não podemos fechar. No entanto, o que é isso que eles nos fazem ver?

Nós nos confrontamos com elas. O adjetivo mais literal que poderia ser aplicado a elas é intrigante. Somos tomados por elas (sei que há pessoas que passam por elas sem se deter, mas sobre essas pessoas não há nada a dizer). Conforme olhamos para elas, o momento do sofrimento alheio nos engolfa. Somos preenchidos ou com desespero ou com indignação. O desespero aceita algo do sofrimento alheio sem propósito. A indignação exige ação. Tentamos emergir do momento da fotografia de volta às nossas vidas. Conforme o fazemos, o contraste é tal que o recomeço de nossas vidas parece ser uma resposta desesperançosamente inadequada ao que acabamos de ver.

As fotos mais típicas de McCullin registram momentos súbitos de agonia – um terror, uma ferida, uma morte, um grito de dor. Esses momentos são, na verdade, definitivamente descontínuos com nosso tempo normal. É o conhecimento de que tais momentos são prováveis e a antecipação deles que faz o “tempo” na linha de frente dessemelhante a todas as outras experiências do tempo. A câmera que isola um momento de agonia não isola mais violentamente do que a experiência desse momento o faz. A palavra disparo, usada para o rifle e para a câmera, reflete uma correspondência que não termina no puramente mecânico. A imagem capturada pela câmera é duplamente violenta e ambas as violências reforçam o mesmo contraste: o contraste entre o momento fotografado e os outros.

Conforme emergimos do momento fotografado de volta às nossas vidas, não percebemos isso; supomos que a descontinuidade é nossa responsabilidade. A verdade é que qualquer resposta ao momento fotografado está determinado a se sentir como inadequado. Aqueles que estão na situação de ser fotografados, aqueles que seguram a mão de quem está morrendo ou amargura um ferimento, não estão vendo o momento como nós o vimos, e suas respostas são de uma ordem totalmente diferente. É impossível olhar pensativamente para esse momento e emergir mais forte. McCullin, cuja “contemplação” é perigosa e também ativa, escreve amargamente sob uma foto: “Apenas uso a câmera como uso uma escova de dentes. Ela faz o serviço.”

As contradições possíveis da fotografia de guerra tornam-se agora evidentes. Geralmente supõe-se que seu propósito é despertar a atenção. Os exemplos mais extremos – como na maior parte da obra de McCullin – mostram momentos de agonia para extorquir o máximo de atenção. Esses momentos, sejam fotografados ou não, são descontínuos com todos os outros momentos. Eles existem por si mesmos. Mas o leitor que foi tomado pela fotografia pode tender a sentir essa descontinuidade como sua própria inadequação moral pessoal. E tão logo isso ocorra até mesmo o seu senso de choque é dispersado: sua inadequação moral pode agora chocá-lo tanto quanto os crimes que estão sendo cometidos na guerra. Ou ele sacode dos ombros seu senso de inadequação como algo que se tornou muito familiar, ou então ele pensa em realizar certo tipo de penitência – cujo exemplo mais puro seria fazer uma contribuição para a Oxfam ou para a UNICEF.

Em ambos os casos, a questão da guerra causadora desse momento é efetivamente despolitizada. A imagem se torna um sinal da condição humana geral. Ela acusa a todos e a ninguém.

A confrontação com um momento de agonia fotografado pode mascarar uma confrontação muito mais ampla e urgente. Normalmente, as guerras que são mostradas estão sendo lutadas direta ou indiretamente em “nosso” nome. O que nos é mostrado nos causa horror. O próximo passo deveria ser, para nós, confrontarmos nossa falta de liberdade política. Nos sistemas políticos tais como existem, não temos oportunidade legal de influenciar efetivamente a conduta das guerras declaradas em nosso nome. Perceber isso e agir de acordo é a única maneira efetiva de responder ao que a fotografia mostra. No entanto, a dupla violência do momento fotografado efetivamente opera contra essa percepção. Essa é a razão pela qual elas podem ser publicadas impunemente.

Julho 1972.