Cordiais saudações!
Traduzi um texto que foi publicado hoje no portal Forward.com. O Jewish Daily Forward tem 120 anos e sua auto-proclamada missão é descrita assim: “Nossa missão à serviço público, inalterada desde nossa fundação, é promover uma cidadania judaica informada, conectada e inspirada por meio de extraordinário jornalismo”.
De fato, o texto a seguir é uma estupenda, de tão bem feita, análise semiótica da capa da Time Magazine com Donald Trump como “Pessoa do ano”.
Boa leitura e até a próxima.
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Por que a capa da Time com Trump é uma obra subversiva de arte política
Jack Romm. 08/12/2016.
Ano após ano, o anúncio da “Pessoa do Ano” da Time Magazine é grosseiramente malentendido. A Time é clara no seu único critério: “a pessoa que teve a maior influência, para o bem ou para o mal, sobre os acontecimentos do ano”. Faça uma rápida busca no Twitter, porém, e você vai encontrar muita gente aparentemente pensando que a escolha da “Pessoa do ano” é o mesmo que uma aprovação. Entre os ganhadores anteriores estão Joseph Stalin(1939, 1942), Aiatolá Khomeini (1979), Adolf Hitler (1938) e outras figuras que, penso ser seguro supor, não são apoiadas pela equipe da Time.
Neste ano, não deveria ser uma surpresa que o presidente eleito Donald Trump fosse escolhido para agraciar a capa da edição anual da Time (fotografado pelo fotógrafo judeu Nadav Kander). “Para o bem ou para o mal”, Trump, durante sua campanha e também agora depois de eleito, certamente esteve entre as maiores influências sobre os acontecimentos do ano. Para algumas pistas sobre a opinião da Time sobre isso – é para o bem ou para o mal? – podemos olhar a imagem escolhida para a capa da edição. As decisões feitas pela revista sobre como fotografar Trump revelam um campo de referências com muitas camadas e nuanças, as quais colocam a imagem entre as maiores capas da revista, na opinião deste observador.
Para desconstruir a imagem, vamos focar sobre três elementos chave (deixando de lado a posição do ‘M’ de ‘Time’, que faz Trump parecer ter chifres vermelhos): a cor, a pose e a cadeira.
A cor
Observe-se que as cores parecem levemente gastas, levemente esmaecidas, suaves. A paleta cria o que pode ser chamado de efeito antiquado [vintage effect]. A nitidez e o detalhamento da imagem revelam a contemporaneidade da foto, mas a cor sugere um tipo de filme mais velho, qual seja, o Kodachrome. Planejado para criar uma reprodução precisa de cores no começo do século XX, o Kodachrome saiu da linha de produção da Kodak recentemente. Foi imensamente popular entre o fim da década de 1930 e a de 1970, e sua aparência característica define nosso conceito visual comum de nostalgia.
Ao reproduzir uma palheta de cores do Kodachrome, a capa da Time nos faz reimaginar a capa como se fosse uma imagem da era da popularidade em massa desse filme (aonde vai a tua mente, se pensa sobre quem eram os líderes na época da Segunda Guerra Mundial, se sobre a segregação [nos EUA], se sobre a Guerra Fria, isso é contigo). Essa virada visual-temporal espelha, em certo sentido, boa parte dos impulsos que alimentaram a ascensão de Trump. Ele fez uma campanha baseada em políticas e atitudes regressivas – anti-protecionismo ambiental, anti-aborto, pró-combustíveis fósseis etc. A última eleição não foi apenas sobre escolhas políticas regressivas, mas também sobre valores tradicionais (definidos principalmente pela direita cristã), sobre a nostalgia de grandeza e de segurança da América, sobre a nostalgia de um mundo pré-globalizado.
A pose
A pose de Trump pode ser lida como uma brincadeira subversiva com uma pose tradicional de retrato de poder (ver o retrato feito por Delaroche de um Napoleão derrotado, para outra maravilhosamente subversiva maneira de ver a pose, embora o tom ali seja mais elegíaco do que de armando um esquema).
É possível entender que pinturas de monarcas sentados têm duas funções estéticas – fundamentar a associação entre a pessoa sentada e o trono, solidificando assim a metonímia, e realçar a impressão de servidão no observador. O observador tem que se aproximar do monarca, o monarca não se levanta para o observador.
No nosso tempo pós-monárquico, o poder do trono já passou faz tempo, mas o poder de uma figura sentada permanece. A própria cadeira não é importante, é o estar sentado que interessa. Ao por um retrato nessa tradição, a cadeira assume a função do trono, e a pessoa sentada, a do rei (ou rainha) – o efeito visual é o mesmo.
Veja-se a seguinte imagem do Lincoln Memorial (para mais referências, ver essas imagens de Vladimir Putin e LL Cool J):
A imagem do Lincoln Memorial (bem como as outras duas) é uma versão exagerada da pose tradicional. Vemos nosso sujeito com a cabeça erguida para cima, mas, mais importante, vemos o sujeito de baixo para cima. O ângulo nos força a olhar para ele, o que por sua vez cria a impressão de que o sujeito está olhando para baixo para nós. Essa pose e esse ângulo, com o observador aparentemente (e literalmente, nesse caso do Lincoln Memorial) aos pés do sujeito, faz com ele pareça dominante, poderoso, crítico.
Mas vire a imagem como numa volta de parafuso e subitamente temos todo um novo conjunto de conotações. Na capa da Time, em vez de ver Trump de cabeça erguida e de baixo, vemos ele sentado pelas costas e mais ou menos no nível dos olhos. A relação de poder alterou-se completamente.
Trump estar virado para a câmera faz com que o tom seja conspiratório em vez de crítico. Há duas imagens em jogo aqui – a imagem frontal do poder, imaginada, e a de fato, na qual Trump parece dar ao observador uma piscadela de conivência, como se dissesse: “veja como enganamos esses trouxas aí na frente” (tanto Trump quanto o observador estão olhando de cima para baixo para quem estaria adiante). Ao subverter a típica dinâmica de poder, a Time, em certo sentido, implica o observador na eleição de Trump, primeiramente por ele estar na capa.
Noutro patamar [de interpretação], muito do que sabemos sobre Donald Trump foi colhido de imagens. Ele é um mestre das marcas, uma estrela de reality show na TV que durante muito tempo foi o preferido dos tabloides. Ao escolher não fotografar Trump de cabeça erguida acima, a capa da Time quase nos oferece um olhar “por detrás da cena” do homem que gastou muito de seu tempo à frente das câmeras – realçando o tom conspiratório e a cumplicidade do observador. A natureza extremamente posada e processada da fotografia dá ainda outro nível de ironia.
Por fim, temos de observar a sombra amedrontadora que vem do segundo plano. É pequena, mas é um pormenor importante e sagaz. Assim como a imagem nos dá dois pontos de vista teóricos, ela também nos dá dois Trumps – Trump-presidente-eleito e o espectro de Trump-presidente, como um fantasma suspenso no ar, esperando para se materializar.
A cadeira
O golpe de mestre, o detalhe singular que complete toda a imagem, é a cadeira. Trump está sentado no que parece ser uma cadeira antiga à Louis XV (assim chamada por ter sido inventada na França sob o reinado de Luís XV, em meados do século XVIII). A cadeira não apenas sugere os reinados impensavelmente ostentadores dos reis franceses imediatamente anteriores à revolução, mas também, mais especificamente, o reinado de Luís XV, o qual, de acordo com o historiador Norman Davies, “dava mais atenção a caçar mulheres e cervos do que a governar o país”, e cujo reinado foi marcado pela “estagnação debilitante”, por “guerras recorrentes” e “crises financeiras perpétuas” (soa familiar?).
O brilho da cadeira, contudo, é visual e não histórico. É um símbolo espalhafatoso de riqueza e status, mas, se você olhar o canto superior direito, pode ver um rasgo no estofado, significando a imagem quebrada do próprio Trump. Por trás das bravatas, por trás das brilhosas exibições de riqueza, das promessas cintilantes, temos a dívida, a falta de gosto, a demagogia, o racismo, a falta de experiência de governo ou de conhecimento (tudo o que infelizmente já sabemos bem). Uma vez que notamos o rasgo, as máculas na madeira se dão a perceber, as fissuras na maquiagem de Trump, a finura de seus cabelos, as manchas no canto inferior esquerdo do assento – toda a ilusão de grandeza começa a entrar em colapso. A capa é menos uma imagem de um homem no poder do que a moldura congelada de um líder, e de seu país, em decadência. A sombra fantasmagórica funciona cruzando os tempos aqui – sugerindo um esplendor que já passou, se é que algum dia existiu.
Considerados conjuntamente, esses elementos contribuem para um retrato profundo de angústia quanto aos próximos anos. Temos o realocamento implícito de Trump em meados do século XX (examinando os arquivos das capas da Time, nenhuma imagem realmente se parece com essa capa, menos esta à esquerda (uma comparação puramente visual)). Temos uma sugestão do lado obscuro e sórdido, conspiratório, do poder. Temos a fachada desmoronante da riqueza, a qual, como O retrato de Dorian Gray, sugere mais do que apenas um elemento de deterioração física.
Como fotografia, é uma realização rara. Como capa, é uma declaração.