Sobre a vontade generalizada de ser massa de manobra

Cordiais saudações!
O texto a seguir foi publicado a dois anos no Correio da Cidadania. Republico aqui ligeiramente modificado por ocasião do aniversário de nascimento de Charles Chaplin, cuja sabedoria nos ensina: “Para rir de verdade, você precisa ser capaz de brincar com a própria dor”.
Obrigado pela visita e boa leitura!

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Nos discursos dos políticos, o que mais ouvimos são acusações: políticos gostam de se acusar uns aos outros. Um esfola-gato muito usado é dizer que o outro não é um líder – “você é incapaz de governar este país”, “O Brasil precisa de um líder forte!” Como se vê, não só em regimes autoritários, mas também em democracias constitucionais, essa ideia é muito atrativa ao comum das gentes: precisamos de um líder forte, um que concentre o máximo de poder nas próprias mãos, domine a política, defina as políticas públicas, resuma todos os partidos num só e tome todas as decisões importantes – é disso que todos precisamos. Queremos alguém em quem depositar nossas crenças, já que nós mesmos não cremos tanto assim nelas…

A submissão a um líder forte foi duramente criticada por Chaplin, em seu primeiro filme falado, último no qual ele aparece como o mendigo Carlitos: O Grande Ditador (The Great Dictator, EUA, 1940). Filmado antes da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, o filme mostra cartazes, letreiros e placas escritos em esperanto, aludindo, talvez, à esperança de Chaplin de sua mensagem pacifista, socialista e utópica, alcançar uma plateia universal.

Diz a história que Chaplin incluiu o famoso discurso final ao saber da invasão da França por tropas nazistas. A fala é riquíssima e levanta muitos temas. Mas o mais importante é o apelo que ele faz ao público. Filmado em plano fechado, olhando para a câmera, sua mensagem a nós pode ser resumida nisso: – Descreiam em líderes, a vida quem faz são vocês. Abdiquem do poder, esqueçam a vaidade e a ganância, ajudem-se uns aos outros e desistam da guerra.

Profundamente cristãs, de um cristianismo primordial e antigo combinado com os mais puros ideais iluministas, suas palavras são a refutação mais direta e realista da política centrada na figura idealizada dos líderes totalitários.

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“Sinto muito, mas não quero ser um imperador, não sou pra isso. Não quero governar ou conquistar ninguém. Se pudesse, eu gostaria de ajudar a todas as gentes, judeus, negros, brancos. Todos queremos ajudar uns aos outros, os seres humanos são assim. Todos queremos conviver com a felicidade alheia, e não com a desgraça do outro. Não queremos odiar e desdenhar uns aos outros. Neste mundo, há lugar para todos e a boa terra é rica e pode sustentar a todos. O caminho da vida pode ser livre e belo. Mas perdemos o caminho”.

O caminho perdido

Esse caminho perdido de Chaplin é evidente também no discurso de Lula sobre si mesmo, um tópico repetido à exaustão por seus apaniguados, como já falei em outro lugar (http://migre.me/tnEpU). Aqui, quero chamar a atenção ao fato de que até quem não é exatamente um prosélito de Lula e do neo-PT acaba cedendo a essa imagem do grande líder, a essa mitologia pessoal criada por e para Lula. Defender “criticamente” as supostas conquistas sociais dos primeiros mandatos federais do PT é uma forma de dar a Lula certa aura que o põe acima do nosso comum e baixo contexto mundano: “O governo Lula foi diferente do governo Dilma, foi muito melhor, mais à esquerda” e outras besteiras que tais. Da mesma maneira, atribuir a ele o rótulo de maior corrupto, bandido, enganador das massas ou inimigo imaginário da história do Brasil é de uma insensatez crônica. Ambas as posturas escondem os processos históricos e ocultam os interesses e as coletividades que o levaram de migrante paupérrimo a presidente do Brasil e o sustentam onde hoje ele está.

Todas essas crenças, porém, são compreensíveis. O fato de o espetáculo conseguir aglutinar as mais imaginativas e incoerentes fantasias – como a de que os governos petistas são uma ditadura bolivariana (?!?) de esquerda (?!?!?) – maquia a capacidade da propaganda de persuadir até eleitores “críticos” a deixarem suas dúvidas de lado e apoiarem a nossa brasileira democracia de fachada. E mais: com o desgaste da imagem de líder de Lula, a crença de que só uma personalidade forte pode nos salvar ganha força. Basta que a insatisfação e o descontentamento da massa sejam mobilizados para uma meta apontada pelo líder – todos caminharemos para lá, aonde ele nos indicar. Basta que o líder seja forte e decidido para por o país nos trilhos do futuro tão ansiado. “Acredito em Sergio Moro!”, bradam orgulhosos muitos ceguetas que se acham videntes. “Lula é o cara!” ou “Dilma é nossa mãe!”, esperneiam de outro lado ensandecidos partidários de uma causa inexistente. “Não é bem assim, há pontos positivos”, resmungam alguns singelos e bem intencionados contemporizadores. As idealizações são aglutinadoras e se retroalimentam, a ignorância grassa.

 

O resultado é sentido na pele por todos: fortalecem-se as lendas pessoais e enfraquecem-se as instituições. Não há espaço para projetos alternativos, pensamento, debate – nada de genuína política, em suma. O personalismo é tão forte que parece atávico. Sua tradução mais comum é a vontade de autoritarismo, um traço muito marcante do senso comum político da cultura nacional (suspeito, não apenas do senso comum, mas essa fica pra outra vez).

A ideia de que o líder potencializa ao máximo o seu poder individual, e é por isso o melhor, tem um passado nada belo. Os regimes totalitaristas do século 20 mostraram bem o problema. A imagem do líder é o centro em torno do qual a propaganda força a gravitação de corações e mentes – tudo se resume ao líder, às ações do líder, seu pensamento e suas vontades. Todo o simbólico é remetido ao líder, nada escapa ao seu olhar, ao seu comando. Toda identificação nacional passa pelo filtro da figura do líder, até mesmo as tradições populares são validadas ou rejeitadas de acordo com o ideal de nação forjado e autorizado pelo líder. O que estiver fora desse ideal, não é nacional e deve ser eliminado. Nenhuma imagem de diferença, nenhum dissenso, nenhum desvio do ideal, por mínimo que seja, é permitido.

Stalin e as imagens esvaziadas de história

Basta um exemplo para deixar claro. Hoje, sabemos que Stalin mandava apagar das fotografias a imagem de opositores à sua ditadura, assassinados a seu mando. A censura soviética apagou de inúmeras fotografias a imagem de pessoas que, como Trotsky, poderiam desmistificar a visão de mundo do totalitarismo stalinista. Foram poupadas apenas a imagem de Lênin, transformado em grande e supremo herói, e a de Stalin, alçado a líder máximo da União Soviética e principal protagonista do processo revolucionário russo – ele, líder ideal, não o povo, os coletivos de trabalhadores, as pessoas reais.

 

Com esse artifício, ele fortaleceu uma imagem que lhe foi muito útil: o único e maior líder, a figura primordial, o principal agente, o grande pai das nações soviéticas. E o povo, que papel desempenhou na Revolução? O de exército, rebanho, ou massa de manobra, para usar uma expressão cara aos que pensam que não são. Stalin mandou assassinar seus opositores, matando-os de fato e simbolicamente. Enquanto viveu, usou seu poder para esconder atrocidades – milhões foram assassinados pelo seu regime – e seus crimes só foram revelados após sua morte. Se o regime soviético sempre foi autoritário e repressivo, se foram cruéis as lideranças coletivas, por piores tenham sido, jamais podem ser equiparadas a Stalin. Maquiavel, no fim das contas, não estava tão equivocado…

O processo de adulteração das fotos cumpria a finalidade de esvaziar a história, apagando a figura daqueles que, afinal, tinham sido apagados da vida pelo ditador. Não é a tentativa de converter o real em virtual coerente com a movimentação totalizadora em torno do líder? Só o líder é capaz de dominar completamente todo o processo político, controlar interesses conflitantes e impor a todos os partidos políticos e toda a sociedade uma única e correta direção. O líder possui convicções inabaláveis – as pessoas acabam por ver em alguém a firmeza que nunca encontrarão em si mesmas. Só mesmo uma entidade divina, mitológica, a qual então não fecunda a realidade, apenas a sufoca.

É preciso reconhecer que o Brasil sequer conseguiu consolidar sua democracia constitucional nos moldes burgueses. Sem tradição de continuidade de processos políticos, sequer conseguimos organizar a participação da sociedade civil (ela existe?), e parece que líderes descomedidos não podem ser freados. Não conseguimos definir onde estão os espaços de liderança e de ação políticas que não podem ser ocupados por uma única pessoa, mas que devem ser reservados ao protagonismo do corpo social. Em momentos de crise, como agora, quem sempre retorna é o nacionalismo verde-amarelista, a clamar por líderes iluminados e fortes; o sebastianismo salvático; a tal indolência natural do brasileiro; jorros de desobediência civil e insatisfação momentânea; e por aí vai. Ao menos, essa é a imagem dos que desejam ser liderados – o povo é incapaz, que venha o deus.

Trump e nós

Um contraste com a América do Norte pode ajudar a esclarecer, e talvez até mostrar o quanto não estamos tão distantes. A resistência contra Trump, em grande parte, deve-se ao temor de que ele, uma vez no poder, consiga minimizar ou até mesmo eliminar o que nos EUA ainda resta desses espaços institucionais, dessa vez não mais apenas em nome de interesses econômicos de grandes corporações de negócios, mas também em benefício próprio, pessoal – Trump é ele mesmo um imenso magnata, dono de grandes empresas midiáticas, possuidor de empreendimentos financeiros e comerciais no mundo todo.

Ele não apenas representa esses interesses, ele os tem. Concentrar mais poder nas suas mãos é um risco tão grande quanto sua fortuna – ainda mais pelas suas declarações imperialistas: “Make America great again”, diz sua campanha, quer dizer, “Tornar a América grande de novo” – o que isso pode significar? Se conseguir mobilizar o ideal nacionalista, Trump mobilizará o anseio de superar todas as dificuldades e diferenças em torno de si e, com isso, direcionará a política para onde quiser. Será aonde queremos também ir? Será o imperialismo estadunidense compatível com outros ideais nacionais? Se a própria ideia de nação é uma abstração talhada para cegar as massas, parece difícil uma conciliação.

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Thank you for your support

Mesmo tendo consciência desse processo, resta a pergunta: por que ainda insistimos nos mitos personalistas? Por que enfatizamos tanto a figura singular que ocupa a presidência em vez de fortalecer as lideranças coletivas no Congresso e nos partidos? Por que não conseguimos renovar os partidos existentes ou mesmo criar novos partidos?

A voz de Charles Chaplin ainda fala e causa espanto como na primeira vez em que foi ouvida no cinema, mas parece que poucos a ouvem.

DISCURSO

“Sinto muito, mas não quero ser um imperador, não sou pra isso. Não quero governar ou conquistar ninguém. Se pudesse, eu gostaria de ajudar a todas as gentes, judeus, negros, brancos. Todos queremos ajudar uns aos outros, os seres humanos são assim. Todos queremos conviver com a felicidade alheia, e não com a desgraça do outro. Não queremos odiar e desdenhar uns aos outros. Neste mundo, há lugar para todos e a boa terra é rica e pode sustentar a todos.

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O caminho da vida pode ser livre e belo. Mas perdemos o caminho. A ganância envenenou as almas dos homens, pôs o mundo dentro de barricadas com ódio, nos fez marchar a passos de ganso para a desgraça e a sanguinolência. Desenvolvemos a velocidade, mas nos trancafiamos. As máquinas que nos dão abundância nos deixam em necessidade. Nosso conhecimento nos tornou cínicos. Nossa inteligência nos fez duros e insensíveis. Pensamos muito e sentimos muito pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, precisamos de sensibilidade e suavidade. Sem essas qualidades, a vida será violenta e tudo se perderá.

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O avião e o rádio nos aproximaram. A própria natureza dessas invenções clama por bondade nos homens, clama pela fraternidade universal, pela unidade de todos nós. Mesmo agora minha voz alcança milhões no mundo todo – milhões de homens desesperados, mulheres e criancinhas – vítimas de um sistema que faz os homens torturarem e aprisionarem pessoas inocentes. Aos que podem me ouvir, eu digo – não se desesperem. A desgraça que agora cai sobre nós é apenas a passagem da ganância – a amargura dos homens que temem o caminho do progresso humano. O ódio dos homens vai passar e os ditadores vão morrer e o poder que eles tomaram das pessoas retornará às pessoas e, enquanto os homens morrerem, a liberdade nunca perecerá.

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Soldados! Não se submetam aos brutos – homens que desprezam vocês – escravizam vocês – que controlam as suas vidas – que dizem a vocês o que fazer – o que pensar e o que sentir! Esses homens adestram vocês, impõem dietas, tratam vocês como se vocês fossem gado, usam vocês como bucha de canhão. Não se submetam a esses homens antinaturais – homens-máquinas com mentes de máquinas e corações de máquinas! Vocês não são máquinas! Vocês não são gado! Vocês são homens! Vocês têm o amor da humanidade nos corações. Vocês não odeiam! Só os que não são amados odeiam – os não amados e os antinaturais!

Soldados! Não lutem por escravidão! Lutem pela liberdade! No capítulo 17 (do evangelho de) S. Lucas está escrito: “o Reino de Deus está dentro do homem” – não de um único homem ou grupo de homens, mas de todos os homens! Em vocês! Vocês, pessoas têm o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar a felicidade! Vocês, pessoas, têm o poder de tornar esta vida livre e bela, tornar esta vida uma aventura maravilhosa.

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Então, em nome da democracia, vamos usar esse poder! Vamos todos nos unir! Vamos lutar por um mundo novo, um mundo decente que dará aos homens uma chance de trabalhar, que dará o futuro à juventude e a segurança à velhice. Pela promessa dessas coisas, os brutos ascenderam ao poder, mas eles mentem! Eles não cumprem suas promessas; eles nunca cumprirão. Os ditadores livram-se a si mesmos, mas escravizam as pessoas! Ora, vamos lutar para cumprir essa promessa! Vamos lutar para libertar o mundo, para desfazer as barreiras nacionais, varrer com a ganância, com o ódio e a intolerância. Vamos lutar por um mundo racional, um mundo em que a ciência e o progresso levarão à felicidade humana. Soldados! Em nome da democracia, vamos todos nos unir!”

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Fantasia, esquecimento e memória

Well we know where we’re going, but we don’t know where we’ve been
and we know what we’re knowing, but we can’t say what we’ve seen
and we’re not little children, and we know what we want
and the future is certain, give us time to work it out

Road to nowhere”, The Talking Heads, 1985

A cada dia mais pessoas vêm-me dizer que viram Django Libre (Django Unchained, E.U.A., 2012), novo filme de Quentin Tarantino, e que adoraram, que é ótimo e tals, que eu preciso ir assistir. Vou repetir: não estou nem um pouco disposto a ir ver mais um filme de Tarantino. Quando eu tinha uns 20 anos, também me empolguei com Cães de Aluguel e Pulp Fiction. Mas já tenho mais de 20 anos e atualmente acho Tarantino uma banalíssima perda de tempo. Com relação a Django Libre, vou repetir o que já se diz por aí e espero que as pessoas que gostaram do filme leiam e reflitam um pouco mais antes de repetirem que Tarantino é genial (exageríssimo). Como eu não sou crítico de cinema e não sou pago para ver o filme, não tenho pudores em afirmar que não vi e não gostei, inclusive porque, tendo visto outros, não tenho razões para achar que o diretor mudou radicalmente seu estilo. Posso muito bem esperar pra ver o filme em DVD, e não quero, com isso, dizer que outras análises e pré-julgamentos não possam ser feitos. Todo filme é uma obra aberta e passível de inúmeras interpretações, e interpretações sempre são informadas por critérios prévios. Exponho alguns aqui a partir do que já li a respeito, aproveitando para também comentar certo tipo de “fantasia branca de resgate”, uma expressão que Ella Shohat e Robert Stam, por exemplo, usam para analisar o imaginário imperialista no livro Crítica da Imagem Eurocêntrica. Há elementos para suspeitar que este Django Livre pode ser entendido como mais um produto cinematográfico desse gênero – só o fato de Spyke Lee tê-lo boicotado já diz muito sobre a maneira como o filme constrói suas personagens e narrativa (Spyke Lee objeta ao uso excessivo, caricatural e estratégico, da palavra “nigger” – “the n word” – no filme. Esse exagero não parece uma tentativa de Tarantino de escapar da acusação de racismo?). Para uma interpretação de Django Livre como uma “white man’s fantasy”, o leitor pode ler o artigo de Annalee Newitz: [http://io9.com/5971780/django-unchained-what-kind-of-fantasy-is-this]. Outro artigo que recomendo é “O doce de Tarantino: a escravidão no imaginário do homem branco” (http://blogs.indiewire.com/shadowandact/tarantinos-candy-slavery-in-the-white-male-imagination), de Tanya Steele. Além de desmontar uma sucessão de clichês e superficialidades, os artigos mostram como qualquer um pode estar imerso num mundo de senso-comum racista sem se dar conta. A estes escritos, acrescento o seguinte.

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1. Ao invés de apresentar algo como o protagonismo de ações coletivas e populares contra o racismo e a escravidão, o filme reafirma o mito do herói individual (assim como o último filme de Spielberg, Lincoln, que já comentei no artigo “O mito Lincoln e a história universal“), numa clássica operação que já foi descrita como “política do silenciamento”. Os silenciados, nesse caso, são o movimento abolicionista e principalmente outros “radicais” da época. E o silenciamento, nesse caso, é de um autoritarismo atroz, pelas razões expostas a seguir.

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2. Pelo que li, o negro do filme é apoiado, resgatado, libertado, sustentado – seja como for – por um branco. Voilà! O passe de mágica está desvendado: não fossemos nós, os brancos, os “niggers” jamais seriam capazes – nem mesmo de contar a própria história. Para isso, eu existo, Tarantino a seu dispor. Ora, Tarantino demonstra ter aprendido muito bem a lição de Silvester Stallone e Robert Zemeckis: os brancos reescrevem a história para mostrar brancos vencedores e negros derrotados ou totalmente ajustados à submissão. Vamos a este terceiro ponto.

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Rocky Marciano nocauteia “Tiger” Tedy Lowry

3. No caso de “Rocky – O Lutador”, é óbvio que se trata de resgatar Rocco Francis Marchegiano, aka Rocky Marciano, último grande campeão de boxe peso-pesado estadunidense e branco. À época do filme, a supremacia “afro-descendente” no boxe dos E.U.A já tinha ao menos uns 20 anos; nada mais propício do que recontar a história para recolocar os brancos (“nós”) no seu devido lugar (por “eles”, os “niggers”, usurpado). No caso de “De volta para o futuro”, o mocinho Marty McFly (Michael J. Fox) volta à década de 1950 para inventar nada menos do que o Rock’n’Roll – com Chuck Berry ouvindo seu próprio riff de Johnny B. Goode ao telefone – o cúmulo da pretensão WASP de recontar a história dos E.U.A. de modo a eliminar os “African-Americans” de todo papel protagonista (no âmbito musical, esse procedimento é ainda mais nefasto, pois os E.U.A. não seriam os E.U.A. se não fossem o blues e o jazz – o mundo não seria o mesmo mundo). O filme de Zemeckis é o máximo a que pode chegar a “fantasia branca de resgate”: o mocinho Marty McFly resgata a herança cultural do rock’n’roll das mãos dos “niggers” (na verdade, faz mais – salva-os de si mesmos!), resgata a família estadunidense dos bêbados e dissolutos, resgata o sonho americano para a sociedade de consumo.

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Marty McFly tocando rock’n’roll para quem o inventou

4. Parece claro que essa onda de “white rescue fantasy” no cinema está diretamente ligada à esquizofrenia pós-moderna, às ondas retrô que assolam nosso mundo desde o final dos anos de 1970. Fredric Jameson já o disse muito bem: essa tentativa de recuperar culturalmente uma época de inocência, quando o “mundo era mais mundo”, as coisas aconteciam “de verdade”, as pessoas eram mais “genuínas”, “não era essa falsidade de hoje em dia”, está fortemente ligada à sociedade de consumo. A partir do momento em que as pessoas que eram crianças e adolescentes envelhecem e se tornam capazes de consumir a valer, eis que a onda retrô de uns 20 anos atrás mais ou menos reaparece. O problema está em que a ligação com o passado, mediada pelo consumo, perde seu valor ativo para nos guiar no presente, transformando-se em instauração de um presente perpétuo, uma vez que o consumismo não tem e não pode ter fim. Sem passado, vivemos num presente perpétuo, re-instaurado a cada momento, incapacitados de pensar no futuro (que sempre chega, no entanto, mesmo que na forma de fatura do cartão de crédito, para acabar com as ilusões).

Star Wars

5. O filme – toda a série – de Zemeckis talvez seja o maior desses produtos culturais pós-modernos. O próprio Jameson cita Guerra nas Estrelas, de George Lucas, pela citação a uma cena de Rastros de Ódio (The Searchers, dir. John Ford. E.U.A., 1956). Mas De Volta para o Futuro parece pastiche maior, se comparado ao filme de George Lucas. Não é mera ironia histórica o fato de Ronald Reagan ter citado o filme, em 1986, num seu Discurso sobre o Estado da União: “Nunca existiu um tempo mais emocionante para se viver, um tempo de maravilhamento crescente e realização heróica. Como eles dizem no filme ‘De volta para o futuro’, ‘Não precisamos de estradas aonde vamos.'” Década de 1950, os E.U.A. como principal potência industrial ocidental, após a Europa destruída pela Segunda Guerra Mundial. No terceiro filme da série, Marty McFly volta ao Velho Oeste, época de formação de tal gloriosa nação. Não por acaso, ‘niggers’ e ‘indians’ são totalmente silenciados no filme, ou então, como já vimos, salvos pelo mocinho branco bem-intencionado. A redenção do mocinho branco é absoluta: ao voltar para o futuro, isto é, para os E.U.A. da década de 1980 e início de 1990, a sociedade de consumo está garantida e salva pelos seus feitos – Marty tem seu carro, recupera o casamento perfeito com a mocinha perfeita, as fantasias sobre E.T.’s e guerras espaciais escritas por seu pai vendem mais que pãezinhos e os bêbados e dissolutos trabalham para ele (os “niggers” desapareceram da história). De fato, o Oeste de John Ford está a anos-luz desse tipo de fantasia, inclusive porque não há sublimação consumista capaz de apagar o gosto amargo de derrota da boca de seus heróis, que geralmente são ou bêbados ou violentos ou desajustados e, às vezes, são tudo isso ao mesmo tempo. As derrotas nos filmes de Ford são amargas justamente porque impostas ao Velho Oeste pela nova civilização consumista – um modo de vida em substituição a outro. Não parece difícil saber qual deles é preferido por Tarantino.

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4. Nietzsche, em sua segunda Consideração Intempestiva (1873), afirmava que temos necessidade de história. Necessidade de história, sim, mas não “de um saber que paralisa a atividade, os conhecimentos históricos que são somente um luxo dispendioso e supérfluo […] Temos necessidade da história para viver e para agir.” Assim, os filmes de Tarantino aproximam-se da história como antes já o tinham feito os de Zemeckis e Stallone, como se a história fosse um grande baú de ossos de heróis, de grandes realizações objetificadas em grandes atos de grandes homens (brancos, ou negros assimilados à cultura e aos ensinamentos dos brancos) – basta abrir o baú e escolher o que melhor nos apraz, deixando lá no fundo o que não interessa (ou o que nos incomoda). Nietzsche também dizia ser possível viver sem lembranças, como nos mostra o animal; “mas é absolutamente impossível viver sem esquecimento”, isto é, sem a capacidade de sentir e vivenciar as coisas fora de qualquer perspectiva histórica. Este é o lado da história que esses filmes evidenciam – para que certa civilização floresça, é preciso esquecer de que foi feita. No entanto, Nietzsche também ressalva a necessidade de uma relação dialética entre esquecimento e memória (sim, dialética, porque Nietzsche, aqui, parece mesmo um hegeliano).  A nós, humanos, não basta o esquecimento e a pura vivência sensorial. Nós, humanos, inevitavelmente pensamos, e é só quando pensamos a história que a história ganha sentido – é o pensamento, é a reflexão cuidadosa sobre o que esquecemos para podermos ser quem somos que serve de contra-balanço ao esquecimento, definindo o horizonte contra o qual se projeta o esquecimento. Se, para sermos felizes, é necessário esquecer, “cada ser vivo não pode ser sadio, forte e fecundo senão no interior de um horizonte determinado; quando não se é capaz de traçar em volta de si um tal horizonte, quanto inversamente se é demasiado egocêntrico para lançar o seu olhar para um horizonte estranho, este se consuma numa apatia ou numa atividade febril, e não tarda a morrer.” O próprio futuro depende da demarcação entre esquecimento e memória, entre o que é claro e o que é escuro, entre o que esquecer e lembrar, e, principalmente,  quando esquecer e quando lembrar. Sem essa delimitação, não há futuro possível, é como se estivéssemos numa estrada para lugar nenhum, como na canção dos Talking Heads. Conclui Nietzsche: “o elemento histórico e o elemento a-histórico são igualmente necessários à saúde de um indivíduo, de um povo, de uma cultura.” Se o excesso de história mata o homem, a falta dela nos reduz a animais. A delimitação do a-histórico e a utilização da história para a vida são obra do pensamento – “e é somente aí que o homem se torna homem”, isto é, que ganha escrúpulos, tornando-se consciente de si e de como veio a ser o que é. Consciência e escrúpulos que, por maiores sejam as boas intenções, Tarantino parece não ter.