O teorema de Kubrick-Clarke: o que podemos frente aos algoritmos?

Cordiais saudações de ano novo!

O texto a seguir foi publicado no Correio da Cidadania ontem, 13/01/2019. Segue aqui também, exceto pelo título sem demais modificações, no embalo do começo de ano.

Boa leitura!

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2001: uma odisseia no espaço (E.U.A./R.U.) fez 50 anos de lançamento em 2018. 2001 não é só o maior filme de ficção científica já feito. Não é só um dos maiores filmes da história. 2001 é um marco cultural da contemporaneidade, um verdadeiro porto seguro aonde desembocam inúmeras inquietações da nossa época. São tão impactantes as suas imagens que é impossível contar as inúmeras citações a 2001 no caldo indistinto da cultura geral, incluindo paródias e pastiches os mais infames e, mais recentemente, inclusive video-games.Por isso, é muito maior do que qualquer interpretação, e incontáveis já foram feitas, na tentativa de explicar o filme. É mesmo uma baita arrogância dizer: vejam só, ó ingênuos espectadores, eis aqui o gabarito que explica tudo o que vocês viram mas não entenderam. Pela mesma razão, sempre nos obrigará a reinterpretá-lo, de modo a nunca esgotarmos seus sentidos. Isso significa que devemos desistir de interpretar o filme? Claro que não. É exatamente por isso que devemos tentar interpretá-lo bem, isto é, especular sobre suas sugestões a partir de seus próprios elementos e recusar especulações que tentem impor um sentido ao filme.

Como todo filme, 2001 traz referências culturais específicas. A primeira está já no título, a Odisseia de Homero. Veremos então uma epopeia, um grande poema épico cinematográfico. Imediatamente, algumas perguntas são feitas: se é uma odisseia, quem é Ulysses? A qual Ítaca retorna? Por quais mares? Para reencontrar qual Penélope? Como veremos, é uma viagem não propriamente de retorno, mas de descoberta, para responder àquela que talvez seja a pergunta mais fundamental: quem sou? Melhor: quem somos? O filme, assim, aparece como uma narrativa mitológica sobre a vida e a morte no cosmos, uma viagem por espaços nunca dantes vislumbrados e sobre o sentido da história humana. Não devemos menosprezar o talento de Arthur C. Clarke na elaboração desse roteiro.

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Outra crucial chave de compreensão é a música. Pelo estranhamento, a música contribui decisivamente para um dos aspectos mais surpreendentes do filme, que é sua capacidade de fazer travessuras com nossa percepção usual. Já se falou que 2001 é uma sinfonia para os olhos, e, de fato, o som contribui muito para isso. Stanley Kubrick, em entrevista à Playboy em 1968, dizia: “Tentei criar uma experiência visual que ultrapassa a categorização verbal e penetra diretamente o subconsciente com um conteúdo emocional e filosófico”. Se ele conseguiu realizar o que queria é discutível, mas, de toda forma, é impossível ficar indiferente à experiência cinematográfica de apenas 43 minutos falados em 138 totais de filme. No entanto, e lembrando mais uma vez de Clarke, a banalidade das falas é calculadamente desconcertante. A personagem principal, o astronauta Dave Bowman (Keir Dullea), por exemplo, jamais retorna os contatos vindos da Terra, restringindo-se a mensagens ocasionais com as bases militares e pouquíssimas mensagens trocadas com a família. Essas, aliás, mostram-no apático, contrastando com a efusiva emotividade dos familiares — um sinal de seu distanciamento psicológico e não apenas físico do nosso mundo? A escassez de palavras, porém, não significa a obliteração do som em nome da imagem, ao contrário: a música assume um papel fundamental, seja na indicação de outras referências culturais, seja para encadear a própria narrativa. A referência mais óbvia é dada pelo tema de Richard Strauss — que se tornou praticamente inseparável de 2001 — ao livro homônimo de Nietzsche, Assim falou Zaratustra. Mas, antes disso, o espectador ouve a composição Atmosferas de György Ligeti enquanto vê apenas uma tela preta, antes mesmo dos créditos do estúdio aparecerem. A história começa aí: aparentemente caótica, a combinação de tonalidades e texturas musicais com a tela preta reforçam a sensação de atemporalidade e pura possibilidade — o que esperar do caos? Ou do nada? O que estamos por ver? É dessa indeterminação que 2001 tira sua força: todas as possibilidades estão abertas.

Só depois desse enigmático início vemos e ouvimos algo definido. Quando a pentatônica em Dó maior — o tom universal — se faz ouvir, o caos passou e 2001 passa a seguir os estágios de desenvolvimento da humanidade segundo o Zaratustra de Nietzsche. Para aquele que não se acha pobre o bastante para dar esmolas, a evolução da humanidade passa por três transformações de natureza simbólica: “Três metamorfoses do espírito menciono para vós: de como o espírito se torna camelo, o camelo se torna leão e o leão, por fim, criança.” Cada uma das partes do filme pode ser vista como uma encenação dessas metamorfoses e sua superação na direção da próxima.

 

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A aurora do homem é a primeira parte do filme e corresponderia ao camelo. Animal domesticado, o camelo é capaz de carregar pesados fardos e sobreviver com pouca água na travessia de imensos desertos. No Zohar e no Zend-Avesta, o quadrúpede é relacionado com a serpente do Jardim do Éden, quer dizer, remete aos estágios mais primitivos da humanidade, à gênese da diferenciação entre bem e mal. Não admira Kubrick começar o filme com a imagem dos primatas ainda não humanos — animais amedrontados pelos fenômenos naturais, em luta cega pela sobrevivência e incapazes de se defender de outros predadores — mas não domesticados. Até a primeira aparição do monolito negro e do alinhamento astral que sempre o acompanhará— Terra, Sol, Lua — a fusão de luz e trevas ainda não está consumada. Depois desse primeiro contato com o monolito e do primeiro alinhamento astral, os primatas aprendem a instrumentalizar o que lhes está à mão e, assim, a distinguir-se da natureza que até então os oprimia para tornarem-se sujeitos da violência. Rigorosamente, o monolito em si não causa nada e tampouco o alinhamento astral. Mas é impossível não fazer associações: há alguma implicação cósmica entre os acontecimentos? De onde surgiu esse estranho objeto? É divino? Foi ali colocado por extra-terrestres? É uma metáfora para a origem extra-terrena ou sobrenatural da inteligência humana? Uma pergunta menos óbvia parece ser quanto a distância entre o ancestral do homo sapiens — chamado Moonwatcher, Observador da Lua, por Clarke — que pela força vence seus semelhantes e o homo sapiens que dobra a força da gravidade pela tecno-ciência — essa distância é intransponível ou menor do que imaginamos?

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Outrora fostes macacos, e ainda agora o homem é mais macaco do que qualquer macaco.” Friedrich Nietzsche. Prólogo de Zaratustra §3.

A narrativa é omissa a esse respeito. Com meras sugestões, todas as instâncias narrativas são praticamente invisíveis (como sempre em Kubrick, aliás). Se o monolito é ou não o catalisador das mudanças, isso é algo que nós inferimos. O máximo que vemos é um corte abrupto abrindo a perspectiva do possível.

Com a mais longa e talvez a mais famosa elipse do cinema, a passagem da primeira para a segunda parte surpreende pelo contraste e, de um só golpe encontramos talvez a única afirmação definida do filme e sua primeira travessura com os espectadores: não importa o quanto nós evoluímos e nos distanciamos dos primatas, importa o quanto ainda não mudamos. O salto do primata ao astronauta é lícito porque muito pouco ou mesmo nada essencialmente mudou, após milênios de humanidade no planeta um padrão permaneceu constante. Descobriremos que esse padrão é a violência e o que veremos na tela é o eterno retorno.

Mas afirmar que ainda estamos próximos dos primatas primitivos é também outra forma de dizer que ainda desconhecemos muitas possibilidades. Há ainda muitas auroras, como a frase do Rig Veda que serve de epígrafe a um livro de Nietzsche chamado — Aurora. É uma forma de afirmar que a história da humanidade é a história das suas auroras, a repetição indefinida nossos erros eternos. É como se fôssemos os camelos de Zaratustra, aquele que cuida de camelos. Por isso, cabe a pergunta: o que ainda podemos ser?

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Ao abrir a visão do espaço sideral, com as estações ao mesmo tempo imensas e minúsculas na tela, 2001 abre espaço para outras perguntas: se tudo é possível em pleno espaço infinito, se a imensidão espacial é atordoante por não caber num golpe de vista, o futuro está aberto. Mas estaria mesmo? Pois, de fato, há os limites da tela, o enquadramento escolhido pelo diretor, a valsa Danúbio Azul de Johann Strauss II (sem relação com o outro Strauss) a nos acalmar… Seria essa uma ironia com o próprio cinema, com sua história e a crise da narrativa clássica no pós-guerra— uma tentativa de vencer os limites da tela?

A segunda parte corresponderia, no esquema de Zaratustra, ao leão, isto é, à impulsividade, ao espírito indomado contrastando com o animal domesticável, aquele que afirma a sua liberdade, a própria encarnação do espírito nobre e livre que superará o animal de carga, domesticado e submisso: “por que é necessário o leão e não basta no espírito o animal de carga? Para criar novos valores.” É a parte mais longa do filme. Nela está a abertura essencial — o arco que vai do Observador da Lua a Dave Bowman (bow = arco, man = homem) permite pensar na presença de uma vontade de transcendência na natureza humana: nós queremos ser mais do que somos, não gostamos do animal que somos, queremos não sê-lo.

Aqui, a odisseia de Kubrick e Clarke começa a mostrar-se como uma nova mitologia para novas conquistas ainda por acontecer. A linguagem dessa nova mitologia depende da fotografia e do cinema. A experiência de fotógrafo de Kubrick vale aqui, na sua capacidade de fazer a câmera comunicar situações visuais dramáticas como se o fotógrafo não estivesse ali. Em 2001, essa capacidade é traduzida na obliteração das instâncias narrativas quase à transparência (uma constante paradoxal em Kubrick). Trata-se de foto-filmar de maneira tão exata de modo a enfatizar a imersão do espectador no espaço diegético, até o ponto de aceitarmos como realmente possíveis as situações contra-intuitivas do filme, a falta de gravidade e tudo o mais. Bem, para lembrar a verdade, em 1969 os primeiros astronautas passearam na Lua… Mas essa é a segunda travessura do filme, na qual a perfeita imbricação de imagem e som é determinante. Se o Zaratustra de Richard Strauss anuncia os grandes temas do filme — da infância da humanidade à superação do humano no filho do universo — o Danúbio Azul nos transmite uma sensação de tranquilidade que fortalece a ilusão das imagens (aliás: essa talvez seja a única sequência no filme inteiro em que respiramos tranquilamente — na ausência do humano). Embora fiquemos estupefatos e a todo momento nos perguntemos “como foi que isso foi filmado?!?”, ficamos tão imersos nesse espaço audiovisual que chegamos a crer convictamente naquelas imagens e jamais nos questionamos nunca termos estado lá!

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Mas é o computador da nave Discovery (“Descoberta”), HAL 9000 (com voz de Douglas Rain, no audio original) quem rouba a cena na segunda parte. E quem é HAL 9000? A sigla vem de Heuristically programmed ALgorithmic computer, “Computador algorítmico heurísticamente programado”. Mas HAL, como os astronautas o chamam, não é apenas um computador, e também não é exatamente um membro da tripulação. Protótipo fictício de uma inteligência artificial avançadíssima, intelectualmente superior, HAL é um subalterno, um instrumento para que a missão seja bem sucedida. Sua presença inicial sugere a inferioridade do inorgânico ao orgânico, uma subordinação das redes neurais ao cérebro humano. A estranheza de HAL — um computador que não só pensa como também tem vontade própria — é reforçada pela sua posição subalterna aos astronautas e reforça a ideia de que o pensamento, ainda que exteriorizado em máquinas e circuitos, está essencialmente ligado a estruturas biológicas orgânicas. Mas essa estranheza será completamente transtornada, pois HAL é um servo insubmisso, capaz de rebelar-se, de imaginar hipóteses imprevistas e desviar a própria programação quase ao ponto da criatividade absoluta. Com isso, ele toma o controle da missão ilicitamente e mostra-se, então, como o genuíno análogo do ciclope Polifemo: mítico, anti-herói, HAL materializa o antagonista primordial ao qual nada escapa — é impressionante a sequência da leitura labial, um só olho que tudo vê! Cinematograficamente, HAL é o complemento do alinhamento cósmico a pressionar a marcha do tempo — impessoal, é o mal absoluto, pura racionalidade materializada, sem corpo e sem alma, o lado escuro do Monolito, as sombras do Esclarecimento, a areia a emperrar o motor da história.

A violência perpetrada por HAL 9000 é asséptica e higiênica. Realizada pelo máximo produto tecno-científico, essa violência indica o potencial destrutivo do ideal civilizatório de domínio da vida e do universo por meios racionais: uma vez conquistada a Terra, conquistemos o espaço além do terreno. 2001 seria, assim, o western potencializado e levado ao máximo paroxismo: a conquista da fronteira vai eliminar a própria fronteira e a guerra não terminará. Apenas para não deixar passar o contexto histórico, em 1968 a Guerra do Vietnã e a Guerra Fria estavam em franco andamento. E se aceitarmos os termos de Max Weber, o desencantamento do mundo resultante da luta da razão contra o mito leva ao próprio paradoxo do esclarecimento materializado em HAL: usando da razão, aonde chegou a civilização, a não ser ao limite de sua própria destruição? A racionalidade instrumental dos primatas é levada às últimas consequências: para atingir um fim pré-programado, mesmo assassinar pessoas é um meio justificável. Para HAL, nada pode alterar o curso da ação pré-planejada, as metas não podem ser abandonadas em hipótese alguma. No fim das contas, HAL é a epítome da civilização racional com respeito a fins: sem emoção alguma, sem valor algum, a não ser sua própria lógica.

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“Receio que não posso fazer isso, Dave”, é a fala tragicômica de HAL 9000.

Essas são as características humanas de HAL. Por isso, é uma violência desligá-lo? Essa me parece uma falsa questão, pois, bem, qual seria a alternativa? Mais interessante parece ser despontar aqui o que chamarei de teorema de Kubrick-Clarke: o humano conseguirá superar os algorítmos. Para tanto, só pode usar sua própria inteligência, da qual esses mesmos algorítmos originaram. Se compararmos Dave e HAL, vemos que, no momento de seu desligamento — o único momento de contato físico entre o homem e a máquina — HAL canta “Daisy” — no momento em que a razão se esvai, ela mostra suas raízes, exibe o que se esconde sob a capa fria da consciência racional. O retorno do recalcado é patético: longe de uma emotividade genuína, o que aparece é um sentimentalismo piegas, caótico e sem direção, sem sentido, simultâneo à desagregação de uma identidade pré-programada. Dave, ao contrário, mostra uma determinação racional longe de ser fria. Nessa sequência, a sua respiração pontua o ritmo das ações e, pela segunda vez no filme, acentua o paradoxo da claustrofobia a despeito do estar num espaço ilimitado — outra travessura do filme.

Parece que as possibilidades humanas não estão inapelavelmente determinadas pelas máquinas. Mesmo assim, os questionamentos permanecem: teriam as máquinas tomado conta de nossas vidas a ponto de não nos restar mais autonomia? Seria HAL a alegoria mais bem acabada de Frankenstein — será mesmo nosso destino sermos oprimidos por nossas próprias criações? O filme também não dá resposta definitiva a essas perguntas, e as ações de Dave Bowman não foram feitas para esclarecer qualquer sentido possível delas, mas para a sua sobrevivência. Retornamos, de certa forma, aos primatas e às palavras de Zaratustra – o que podia o osso do primata é o que também pode HAL 9000 — mas será apenas isso?

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Chegamos à terceira e final parte do filme, Júpiter e além do infinito. Agora, o astronauta ultrapassa um portal cósmico que o leva a outra dimensão, completamente desconhecida. A experiência audiovisual é indescritível. E é também irreprodutível em telas pequenas — ao menos uma vez na vida é preciso ver 2001 numa sala de cinema, com a maior tela possível.

O teorema de Kubrick-Clarke já ganhou um corolário: a natureza da espiritualidade humana está ligada à sua ancestral violência bestial, remontando ao primitivo humano-primata observador de estrelas distantes — uma violência prosaica, natural, desprovida de moralidade pois ligada diretamente à sobrevivência. Essa violência, no entanto, pode ser transvaloradasublimada, diria Freud — pelo êxtase causado por experiências de alheamento — de observar estrelas, passamos a viajar ao infinito. Findará, assim como o filme, junto com ele, a sensação de claustrofobia. Nosso conhecimento tecnocientífico pode ser usado também para isso — não o testemunha o cinema? Este filme, 2001, não é um prodígio de tecnologia? Para o bem e para o mal, reencontramos nossas crenças e nossas decepções no cinema — e essa é mais uma travessura de 2001 com seus espectadores.

O super-homem de Nietzsche é apenas uma criança. O filme e o romance posteriormente escrito por Clarke divergem em certos detalhes sobre o que pode essa criança, chamada Star-child (“Criança das estrelas”) por Clarke. Mas, com o retorno do tema de Zaratustra de Strauss, parece lícita a aproximação. A viagem astral propicia ao astronauta um encontro de transformação consigo mesmo, em outra temporalidade. Sua experiência sugere que a espiritualidade humana revela-se verdadeiramente na vivência do desconhecido, do que nos ultrapassa, a ponto de podermos olhar para o mundo com os olhos de uma criança, isto é, com inocência e curiosidade sem medo. É como se a história humana só pudesse ganhar sentido se conseguíssemos preparar o nascimento do que nos ultrapassa: uma criança além-humana.

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Retrato de Friedrich Nietzsche pintado por Edvard Munch, c. 1906; Munch-museet, Oslo, Norway; De Agostini Picture Library/Bridgeman Images.

Na vívida prosa poética de Nietzsche, Übermensch significa um ir-além-do-humano, uma superação das nossas humanas limitações. Muito discutida e de fato ruim, a tradução por super-homem fixou-se no nosso idioma, mas a verdade é que o termo original nada significa de sobre-humano ou sequer de mágico. O ser humano não é finalidade, mas meio: “Grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio” [“Prólogo de Zaratustra”, §4]. Super-homem é quem transcende o homem, não uma divindade, muito menos alguém que possa hoje ser considerado um indivíduo superior aos outros. O além-do-humano é um tipo radicalmente diferente de ser humano, e, embora gestado por nós mesmos, capaz de transcender nossa condição imediata.

Muitas outras sugestões podem ser acrescentadas a essas. Seria a viagem ao espaço uma ascese ao divino? O filme também nada esclarece sobre isso. O espaço é uma grande metáfora: o vazio, o inexplorado, o alheamento do chão, a liberdade e a autonomia absolutas. Mas, de fato, os astronautas passam o tempo todo confinados no espaço fechado das naves. Na única ocasião em que um astronauta flutua solto no espaço, temos uma situação tétrica causada por HAL em que o espaço ilimitado torna-se prisão perpétua, as naves, féretros sidéricos — retomando a travessura do confinamento. Que será das relações humanas mediatizadas pelas máquinas? Estaremos condenados a recriar eternamente as condições nossa própria morte? De fato, estamos, sim, é isso o que fazemos desde sempre. Mas a quem cabe o controle — a nós ou aos algorítmos? Existe uma realidade humana dentro da máquina — seria a mente separada do corpo? Seria possível inserir vida mental em qualquer suporte inorgânico? Haveria um fantasma dentro da máquina? E essa vida mental, teria tendências inevitavelmente destrutivas ou criativas (se é que a separação é possível…)? Com essas perguntas, a viagem astral ganha múltiplos e indefinidos sentidos. É certo que o astronauta não projeta uma imagem preconcebida de vida no cosmos, evitando, assim, um antropomorfismo ingênuo. Por 2001, apenas as experiências humanas impulsionam o humano. Sequer podemos atribuir poderes mágicos ou vitais ao monolito ou ao alinhamento astral. Mas também é certo que ao libertar-se de suas vestes de astronauta e aparecer sem capacete, o astronauta declina velozmente antes da criança nascer.

Para uma criança, sua transformação, seu deixar de ser animal para ser o que está além de si mesma, só pode representar um novo começo, outro nascimento, inocência quanto ao futuro e esquecimento do passado. Dizendo sim para o desconhecido, talvez transformemos nossa maneira de ver o mundo e reecontremos, transformados, a nós mesmos.

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DICAS: Arthur C. Clarke escreveu contos que serviram de base para o roteiro, e este foi escrito em conjunto com Kubrick. Clarke escreveu o romance posteriormente, tendo como base a colaboração com Kubrick. 2001 é um caso raro e especial em que o romance é a adaptação do filme, e não o contrário. A história detalhada dessa colaboração é contada por Michael Benson, em seu 2001: Uma odisseia no espaço — Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke e a criação de uma obra-prima (trad.: Álvaro Hattner, Cláudio Carina. São Paulo: Editora Todavia, 2018), uma verdadeira “biografia” do filme. A leitura pode se tornar ainda mais interessante se acompanhada da audição das composições que fazem parte da trilha sonora do filme, facilmente encontrada de graça na Internet.

 

Para a fé, basta a dúvida

Esse texto foi publicado recentemente no Correio da Cidadania, com o título “Para ter fé, basta aceitar as próprias dúvidas”. Republico-o aqui com pouquíssimas alterações, apenas para tornar o idioma em que foi escrito um pouco menos ruim, aproveitando também para deixar algumas sugestões de imagens.
Como 2018 foi um ano de muitas certezas, creio que vale a pena meditar um pouco mais a dúvida.

Cordiais saudações, boa leitura e boas festas de fim de ano.

 

Ao André Itaparica, mestre da fé e amigo de fé, em seu aniversário.

“Há, verdadeiramente, duas coisas diferentes: saber e crer que se sabe. A ciência consiste em saber; em crer que se sabe está a ignorância.”

Hipócrates?

 

É possível duvidar de tudo e qualquer coisa? De qualquer maneira? Ora, não. Duvidar de tudo é o mesmo que não duvidar de nada, quer dizer, se dúvidas imaginárias são possíveis, nem sempre são legítimas. Vamos ficar com um exemplo famoso na filosofia contemporânea. Se alguém diz, “Eu tenho dúvidas de que esta mão é minha”, então sobre quais outras certezas se apoia para duvidar disso? Por acaso a pessoa duvida de seus olhos? Duvida se enxerga apenas uma mão e não duas? O exemplo sugere que uma dúvida só pode surgir no contexto de outras certezas, assunções previamente acreditadas como fora de dúvida. Se desejamos investigar certa questão para descobrir a verdade acerca dela, então é porque aceitamos sem duvidar certos critérios de investigação, questionamento, hipóteses etc. Ora, se pomos algo à prova é porque já pressupomos outros algos como provados, isto é, se digo “duvido de x”, é porque já disse para mim mesmo “sei y”, o que é como dizer “estou disposto a crer em y para poder duvidar de x”. Além disso, se não houver uma dúvida real, nascida da experiência viva do mundo, por que eu deveria duvidar de x, y ou z? É inútil tentar criar dúvidas imaginárias sobre o que de fato não questionamos — não estamos dispostos a duvidar de tudo. Se é fácil dizer que conseguimos fingir as dúvidas, é muito mais complicado dizer que conseguimos fingir nossas certezas.

 

 

Essas são perguntas suscitadas por Dúvida (E.U.A., 2008), filme roteirizado e dirigido por John Patrick Shanley, baseado em peça de sua própria autoria. A história é simples. Em 1964 — um ano depois do assassinato do presidente John F. Kennedy, nos E.U.A. — o padre Flynn (Philip Seymour Hoffman) tenta modernizar os costumes pedagógicos da escola da paróquia, até então dirigida pela Irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep) sob uma rígida disciplina de vigília constante e de medo. Neste ano, a escola acaba de receber seu primeiro estudante negro, Donald Miller (Joseph Foster). Quando a inocente Irmã James (Amy Adams) partilha com a Irmã Aloysius uma suspeita de que o Padre Flynn dá muita atenção pessoal ao garoto negro, a madre diretora da escola decide engajar-se pessoalmente em provar que o padre abusou do garoto, com o objetivo de expulsá-lo da paróquia. Ela chega a tentar envolver a mãe de Donald, a senhora Miller (Viola Davis), nessa sua inquisição pessoal e confronta o padre levantando seu passado, insubmissa à hierarquia da Igreja.

            À primeira vista, parece que veremos mais uma denúncia da pedofilia clerical. Mas não é tão simples. O filme não quer fazer críticas à instituição da Igreja. O tema principal parece ser mesmo a dúvida, e, mais, o filme lança um repto a todos os seus espectadores quanto à licitude das nossas certezas e nossos critérios de saber.

Desde o começo, somos chamados a questionar o que tomamos por líquido e certo. O primeiro sermão do Pe. Flynn inverte o senso-comum. Não somos, diz ele, uma comunidade unida apenas pelas crenças e certezas partilhadas, unidos apenas pela mesma fé, mas também nossas dúvidas constituem elos comunitários, que podem ser tão fortes quanto o que conscientemente julgamos saber. Com a diferença de que normalmente não pensamos nisso. E, por fim, o Pe. Flynn nos provoca: duvidem.

 

Estranha mensagem vinda de um Padre! Ele não deveria nos instar a crer? Trata-se, no filme, justamente de questionar crença e dúvida num contexto histórico de instabilidade e transformação do certo em duvidoso. Dentre muitos outros fatores, a luta pelos direitos civis nos EUA e o Concílio Vaticano II de 1961 balançaram crenças e valores tradicionais, instaurando dúvidas de toda natureza na ordem mundana da segunda metade do século XX.

            Com esse pano de fundo, a atitude das personagens quanto ao próprio saber ganha destaque. A jovem Ir. James, toda bondade e compaixão, é a personificação da genuína fé, uma atitude sincera e aberta diante da vida, sem deixar de lado seus princípios. Ela não duvida por duvidar, ao contrário, sua fé é convicta.

Já a Irmã Aloysius é a personificação de um autoritarismo dogmático e intimidador. Ela instila a desconfiança nas pessoas — “estejam alertas, não importa de quê” — e vê-se no direito de duvidar de tudo e de todos, mesmo sem quaisquer evidências. Dessa maneira, mantém uma férrea disciplina na escola e no convento. Sua mera presença é amedrontadora, sua postura, sempre auto afirmativa. Ir. Aloysius sempre jura pela sua própria experiência e pelo seu alegado conhecimento da alma humana. Três de suas falas revelam sua psicologia. Duas delas indicam sua teimosia em confiar apenas em critérios epistêmicos subjetivos e individuais: “Eu tenho minha certeza.” e “Eu conheço as pessoas.”. Mas, justamente por isso, ela também afirma: “Eu tenho dúvidas” (em quais momentos, não direi para não estragar o filme).

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Ir. Aloysius, disposta a ter certeza, e Ir. James, disposta a crer

Firme diante das acusações, Pe. Flynn não deixa de ser ambíguo e parece mesmo andar no fio da navalha entre a culpa óbvia e a inocência possível, contrastando com a tenacidade da Irmã Aloysius. Ele gosta de guardar florzinhas coloridas entre as páginas da Bíblia, prefere suas unhas um pouco mais longas e perfeitamente limpas, gosta de bastante açúcar. Seriam essas preferências indícios de homossexualidade? Não há como saber. Pela conversa entre Ir. Aloysius e a mãe do garoto sabemos que Donald demonstrou tendências homossexuais e que foi espancado pelo pai por isso. Talvez esse seja o elo entre o garoto e o padre. Mas podemos afirmar existir ali uma ligação sexual e não de reconhecimento mútuo e compaixão? O menino está sozinho, é o único aluno negro em uma escola toda branca. É ilícito querer ampará-lo? O filme inteligentemente não dá resposta definitiva e deixa ao espectador a tarefa de fazer a própria cabeça — como a Ir. Aloysius. Nem sequer as semiconfissões de certas personagens indicam algo mais concreto. Tudo o que o espectador vem a saber é também tudo e apenas o que a Ir. Aloysius vem a saber, isto é, o relatado pela Ir. James. Se não há uma confirmação ótica do que pode ter havido entre o padre e o garoto, também nos sentimos tentados a ver pistas nos olhares, nos gestos, na linguagem corporal… mas inconclusivamente. Nesse sentido, o filme é surpreendentemente sutil e sincero com a plateia, e só uma única mentira é contada, para ser revelada no final e que obviamente não revelarei aqui.

            Assim, é aos poucos que Dúvida vai amarrando os nós da linguagem, de maneira muito sóbria, criando um distanciamento que faz o espectador ver como se estivesse no lugar das diferentes perspectivas, o que não significa forçar a identificação da plateia com alguma personagem específica, absolutamente. Ao contrário, somos convidados a questioná-las todas e, com isso, a questionar a nós mesmos: até onde podemos confiar nas nossas impressões? Qual é o limite da certeza e da dúvida? Podemos acreditar fielmente que sabemos o que acontece em nossas vidas? Se realmente pudéssemos impor a justiça que sonhamos ao mundo, seríamos capazes de dizer sem sombra de dúvida: “temos certeza do que estamos fazendo”? Sem responder a nenhuma dessas perguntas, Dúvida apresenta uma grande meditação contemporânea sobre a legitimidade de nossas escolhas e nossos critérios epistêmicos, ampliando a reflexão sobre as conseqüências das nossas ações no mundo.

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            Aqui, cabe recuperar a reflexão sobre a fé feita na Idade Média pelo maior doutor da Igreja Católica de Roma: S. Tomás de Aquino. Ora, o sermão inicial parece nos dizer que não apenas o medo não deve ser temido — como relembra a jovem professora Ir. James — mas sobretudo não devemos temer as dúvidas quanto às nossas próprias certezas. É justamente isso o que S. Tomás pregava no século XII: ter fé é crer mesmo sem evidências concretas, dando por vontade própria assentimento a outrem. Por isso, a fé depende, em primeiro lugar, de uma determinação pessoal da vontade, e, segundo, é um conhecimento inacabado, cuja perfeição não depende dela mesma. Ao encaminhar a questão dessa maneira, S. Tomás lega à tradição ocidental uma discussão na qual ética e conhecimento aparecem intimamente entrelaçados.

Para o Doctor Universalis, a imperfeição é “da razão da fé”, quer dizer, faz parte de sua lógica ser imperfeita. Se a fé, por um lado, é um conhecimento mais perfeito do que a mera opinião, pois dá adesão firme ao que se crê mesmo que seja desconhecido, ela é por isso mesmo imperfeita relativamente à ciência, pois essa adesão do crente ao objeto de sua fé não é fruto de conhecimento intelectual, mas apenas do querer. Claro, a imperfeição está no sujeito, e não no objeto: “o crente não vê o que crê”. Por isso, para ter fé, é preciso ter disposição para aceitar uma verdade que, embora possa ser racionalmente estabelecida em algum momento posterior, não é conhecida de antemão. Se o sujeito não quer abandonar seu próprio crivo, reconhecendo que não pode tudo saber, tudo ver e tudo demonstrar, não há genuína fé, apenas dogmatismo, individualismo, relativismo. E não apenas em questões de fé, mas também em questões de raciocínio, há pressupostos assumidos e não provados: “Também entre muitas verdades demonstradas, introduz-se, às vezes, algo falso que não se demonstra, mas que se aceita por razão provável ou sofística, tido como demonstração. Por isto, foi conveniente apresentar aos homens por via de fé uma certeza fixa e uma verdade pura das coisas divinas” [Suma contra gentios I, 4]. Não se trata de abandonar a razão, apenas de reconhecer seus fundamentos irracionais, seus limites e seu justo âmbito de validade.

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            Além disso, sem a caritas, sem o amor universal que define a essência do próprio Deus, nenhuma fé e nenhuma razão podem atingir a perfeição. Se a vontade de amar faltar, não há como ter vontade de crer, pois o reto movimento da vontade vem do amor (como também já dizia S. Agostinho). A fé sem o amor é como a fortaleza ou a temperança sem a prudência. E assim também a esperança, imperfeita sem o amor, porque baseada não nos méritos já possuídos, mas nos méritos que a pessoa intenciona ganhar no futuro. Ora, essa não é esperança de bem-aventurança vinda de Deus, mas tão-só expectativa de ter os próprios desejos particulares contemplados. Expectativa egoica, diríamos hoje, daquelas que se frustradas causam ressentimento. Tomás cita Hebreus 11, 1: “a fé é a substância das coisas que se devem esperar, o argumento das coisas que não se vêem”. Não cita nesse contexto, mas nem precisaria, a famosa passagem de Coríntios 1, 13: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”.

            Pois essa é exatamente a dúvida que Dúvida nos apresenta: de onde tiro os critérios que validam minhas conclusões? Pois, se há evidências e certezas verdadeiras, também há as falsas. Como posso distingui-las se não concedo duvidar de mim mesmo? O que isso tudo tem a ver com fé, esperança e amor?

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É a Ir. James quem diretamente acusa a Ir. Aloysius de desvincular as virtudes teologais, como se dissesse: “Você não quer crer no mistério, não está disposta a ter fé no que a esperança e o amor ditam.” Com isso, Ir. James na verdade acusa Ir. Aloysius de assumir uma atitude completamente anti-católica. Crédula no que já se conforma ao que tem certeza de saber, descrente da possibilidade da dúvida e do mistério encarnado no mundo, Ir. Aloysius só crê em si mesma. Não por acaso, depois dessa contundente conversa vem o não menos contundente segundo sermão do Pe. Flynn no filme, numa sequência cuja notoriedade recente na Internet não é fortuita: o sermão sobre a fofoca, isto é, o espalhar aos ventos a descrença quanto aos outros, recusar aos outros o benefício da dúvida por falta de amor ao próximo e apego às próprias certezas individuais.

Quer dizer então que o critério de evidência individual é insuficiente? Sim! Pois se não há partilha pública de evidências, como eu poderia ter certeza de que não estou errado? Se erro um cálculo, e meu único critério para corrigir o erro for exclusivamente individual e privado, como saber se errei ou não? O que S. Tomás diria é que, nesse caso, eu não teria como saber, pois para isso precisaria recorrer a outras pessoas. O apego da Ir. Aloysius às próprias certezas jamais permitiria que ela assim procedesse.

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Palavras ao vento

 Ora, não surpreende, assim, que S. Tomás identifique a raiz de todos os pecados na vontade, e que o pior dos pecados morais por ele destacado seja exatamente a infidelitatis, ou seja, literalmente, a falta de fé, a descrença quanto ao que não é certeza individual. Nos termos de S. Tomás, descrer é recusar o benefício da dúvida, pois se a fé é crer sem ver, quem descrê não aceita abrir mão voluntariamente de seu assentimento em favor de outrem, ao menos não sem alguma contrapartida considerada vantajosa. Por isso, ele afirma: a descrença nasce da soberba, que induz a pessoa a não submeter seu intelecto às regras da fé e à sadia compreensão dos padres da Igreja. Da vangloria nascem as presunções de novidades. O ponto central, portanto, está na determinação da própria vontade, aquilo que, séculos mais tarde, o Iluminismo, pela voz de Kant, caracterizou como autonomia da razão prática, ou seja, da vontade. Aí encontramos um dos pecados da Ir. Aloysius: ela pensa ser autônoma, mas é apenas crédula e vaidosa.

            A verdade da fé, para S. Tomás e para todos os filósofos da Escolástica, só pode ser uma verdade pública, inspirada pelo amor, e, por isso, coletivamente referendada, baseada não em evidências internas, mas na revelação, referendada universalmente por evidências alheias a nós — a verdade é a mesma em toda parte, não é racional supor que só eu a conheça. E aqui vemos outro pecado da Ir. Aloysius: indisposta a aceitar a dúvida quanto a si mesma, ela se coloca num lugar que não lhe pertence de direito, o de juiza suprema e incontestável. Seu autoritarismo é atroz: ela recusa curvar sua razão individual e por todos os meios até o fim busca firmar-se como autoridade máxima quanto aos critérios de crença e dúvida da comunidade. Em vez de aceitar a impossibilidade de ver e saber tudo, ela teima em não aceitar o mistério e quer impor a sua certeza, os seus critérios, as suas maneiras a todos os outros. Jamais se questionando sobre como chegou a ter as certezas que tem, sobre os pressupostos de suas conclusões, ela evita toda auto-reflexão e, com isso, age contra a própria libertação. Ao fim e ao cabo, Ir. Aloysius é pega na mesma armadilha que armou contra o Pe. Flynn.

            Segundo S. Tomás, a verdade da fé é bem diferente disso. A genuína fé revela uma verdade possível de ser reconhecida por todos que se dispuserem a aceitá-la com amor. Se Deus é amor (1 Jo 4, 8), o Quarto Evangelho também nos diz que Deus é o logos materializado no mundo (Jo 1, 1). Logos, palavra grega que significa linguagem, pensamento, e é traduzida em latim ora como ratio, razão, ora como verbum, palavra. O amor é indiscernível de sua linguagem, de sua intenção para o outro, de sua realização lógica no mundo. O diálogo entre o Pe. Flynn e a Ir. James no jardim da escola depende da fé nessa verdade, depende dessa disposição para crer no que ultrapassa nossa humana cognição. Mas nem por isso, nem por ser amoroso, é menos lógico.

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DICA DE LEITURA: Além do já indicado, apoiei-me nas seguintes questões da Suma Teológica de S. Tomás: da primeira seção da segunda parte [Ia IIae], a quaestio LXV: De connexione virtutum: Sobre a conexão das virtudes, articulus IV; a quaestio LXVII: De durationem virtutum post hanc vitam: Sobre a duração das virtudes depois desta vida, articulus III; da segunda seção da segunda parte [IIa IIae], a quaestio X: De infidelitate in communi: Da descrença em geral.

 

 

Sobre a vontade generalizada de ser massa de manobra

Cordiais saudações!
O texto a seguir foi publicado a dois anos no Correio da Cidadania. Republico aqui ligeiramente modificado por ocasião do aniversário de nascimento de Charles Chaplin, cuja sabedoria nos ensina: “Para rir de verdade, você precisa ser capaz de brincar com a própria dor”.
Obrigado pela visita e boa leitura!

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Nos discursos dos políticos, o que mais ouvimos são acusações: políticos gostam de se acusar uns aos outros. Um esfola-gato muito usado é dizer que o outro não é um líder – “você é incapaz de governar este país”, “O Brasil precisa de um líder forte!” Como se vê, não só em regimes autoritários, mas também em democracias constitucionais, essa ideia é muito atrativa ao comum das gentes: precisamos de um líder forte, um que concentre o máximo de poder nas próprias mãos, domine a política, defina as políticas públicas, resuma todos os partidos num só e tome todas as decisões importantes – é disso que todos precisamos. Queremos alguém em quem depositar nossas crenças, já que nós mesmos não cremos tanto assim nelas…

A submissão a um líder forte foi duramente criticada por Chaplin, em seu primeiro filme falado, último no qual ele aparece como o mendigo Carlitos: O Grande Ditador (The Great Dictator, EUA, 1940). Filmado antes da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, o filme mostra cartazes, letreiros e placas escritos em esperanto, aludindo, talvez, à esperança de Chaplin de sua mensagem pacifista, socialista e utópica, alcançar uma plateia universal.

Diz a história que Chaplin incluiu o famoso discurso final ao saber da invasão da França por tropas nazistas. A fala é riquíssima e levanta muitos temas. Mas o mais importante é o apelo que ele faz ao público. Filmado em plano fechado, olhando para a câmera, sua mensagem a nós pode ser resumida nisso: – Descreiam em líderes, a vida quem faz são vocês. Abdiquem do poder, esqueçam a vaidade e a ganância, ajudem-se uns aos outros e desistam da guerra.

Profundamente cristãs, de um cristianismo primordial e antigo combinado com os mais puros ideais iluministas, suas palavras são a refutação mais direta e realista da política centrada na figura idealizada dos líderes totalitários.

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“Sinto muito, mas não quero ser um imperador, não sou pra isso. Não quero governar ou conquistar ninguém. Se pudesse, eu gostaria de ajudar a todas as gentes, judeus, negros, brancos. Todos queremos ajudar uns aos outros, os seres humanos são assim. Todos queremos conviver com a felicidade alheia, e não com a desgraça do outro. Não queremos odiar e desdenhar uns aos outros. Neste mundo, há lugar para todos e a boa terra é rica e pode sustentar a todos. O caminho da vida pode ser livre e belo. Mas perdemos o caminho”.

O caminho perdido

Esse caminho perdido de Chaplin é evidente também no discurso de Lula sobre si mesmo, um tópico repetido à exaustão por seus apaniguados, como já falei em outro lugar (http://migre.me/tnEpU). Aqui, quero chamar a atenção ao fato de que até quem não é exatamente um prosélito de Lula e do neo-PT acaba cedendo a essa imagem do grande líder, a essa mitologia pessoal criada por e para Lula. Defender “criticamente” as supostas conquistas sociais dos primeiros mandatos federais do PT é uma forma de dar a Lula certa aura que o põe acima do nosso comum e baixo contexto mundano: “O governo Lula foi diferente do governo Dilma, foi muito melhor, mais à esquerda” e outras besteiras que tais. Da mesma maneira, atribuir a ele o rótulo de maior corrupto, bandido, enganador das massas ou inimigo imaginário da história do Brasil é de uma insensatez crônica. Ambas as posturas escondem os processos históricos e ocultam os interesses e as coletividades que o levaram de migrante paupérrimo a presidente do Brasil e o sustentam onde hoje ele está.

Todas essas crenças, porém, são compreensíveis. O fato de o espetáculo conseguir aglutinar as mais imaginativas e incoerentes fantasias – como a de que os governos petistas são uma ditadura bolivariana (?!?) de esquerda (?!?!?) – maquia a capacidade da propaganda de persuadir até eleitores “críticos” a deixarem suas dúvidas de lado e apoiarem a nossa brasileira democracia de fachada. E mais: com o desgaste da imagem de líder de Lula, a crença de que só uma personalidade forte pode nos salvar ganha força. Basta que a insatisfação e o descontentamento da massa sejam mobilizados para uma meta apontada pelo líder – todos caminharemos para lá, aonde ele nos indicar. Basta que o líder seja forte e decidido para por o país nos trilhos do futuro tão ansiado. “Acredito em Sergio Moro!”, bradam orgulhosos muitos ceguetas que se acham videntes. “Lula é o cara!” ou “Dilma é nossa mãe!”, esperneiam de outro lado ensandecidos partidários de uma causa inexistente. “Não é bem assim, há pontos positivos”, resmungam alguns singelos e bem intencionados contemporizadores. As idealizações são aglutinadoras e se retroalimentam, a ignorância grassa.

 

O resultado é sentido na pele por todos: fortalecem-se as lendas pessoais e enfraquecem-se as instituições. Não há espaço para projetos alternativos, pensamento, debate – nada de genuína política, em suma. O personalismo é tão forte que parece atávico. Sua tradução mais comum é a vontade de autoritarismo, um traço muito marcante do senso comum político da cultura nacional (suspeito, não apenas do senso comum, mas essa fica pra outra vez).

A ideia de que o líder potencializa ao máximo o seu poder individual, e é por isso o melhor, tem um passado nada belo. Os regimes totalitaristas do século 20 mostraram bem o problema. A imagem do líder é o centro em torno do qual a propaganda força a gravitação de corações e mentes – tudo se resume ao líder, às ações do líder, seu pensamento e suas vontades. Todo o simbólico é remetido ao líder, nada escapa ao seu olhar, ao seu comando. Toda identificação nacional passa pelo filtro da figura do líder, até mesmo as tradições populares são validadas ou rejeitadas de acordo com o ideal de nação forjado e autorizado pelo líder. O que estiver fora desse ideal, não é nacional e deve ser eliminado. Nenhuma imagem de diferença, nenhum dissenso, nenhum desvio do ideal, por mínimo que seja, é permitido.

Stalin e as imagens esvaziadas de história

Basta um exemplo para deixar claro. Hoje, sabemos que Stalin mandava apagar das fotografias a imagem de opositores à sua ditadura, assassinados a seu mando. A censura soviética apagou de inúmeras fotografias a imagem de pessoas que, como Trotsky, poderiam desmistificar a visão de mundo do totalitarismo stalinista. Foram poupadas apenas a imagem de Lênin, transformado em grande e supremo herói, e a de Stalin, alçado a líder máximo da União Soviética e principal protagonista do processo revolucionário russo – ele, líder ideal, não o povo, os coletivos de trabalhadores, as pessoas reais.

 

Com esse artifício, ele fortaleceu uma imagem que lhe foi muito útil: o único e maior líder, a figura primordial, o principal agente, o grande pai das nações soviéticas. E o povo, que papel desempenhou na Revolução? O de exército, rebanho, ou massa de manobra, para usar uma expressão cara aos que pensam que não são. Stalin mandou assassinar seus opositores, matando-os de fato e simbolicamente. Enquanto viveu, usou seu poder para esconder atrocidades – milhões foram assassinados pelo seu regime – e seus crimes só foram revelados após sua morte. Se o regime soviético sempre foi autoritário e repressivo, se foram cruéis as lideranças coletivas, por piores tenham sido, jamais podem ser equiparadas a Stalin. Maquiavel, no fim das contas, não estava tão equivocado…

O processo de adulteração das fotos cumpria a finalidade de esvaziar a história, apagando a figura daqueles que, afinal, tinham sido apagados da vida pelo ditador. Não é a tentativa de converter o real em virtual coerente com a movimentação totalizadora em torno do líder? Só o líder é capaz de dominar completamente todo o processo político, controlar interesses conflitantes e impor a todos os partidos políticos e toda a sociedade uma única e correta direção. O líder possui convicções inabaláveis – as pessoas acabam por ver em alguém a firmeza que nunca encontrarão em si mesmas. Só mesmo uma entidade divina, mitológica, a qual então não fecunda a realidade, apenas a sufoca.

É preciso reconhecer que o Brasil sequer conseguiu consolidar sua democracia constitucional nos moldes burgueses. Sem tradição de continuidade de processos políticos, sequer conseguimos organizar a participação da sociedade civil (ela existe?), e parece que líderes descomedidos não podem ser freados. Não conseguimos definir onde estão os espaços de liderança e de ação políticas que não podem ser ocupados por uma única pessoa, mas que devem ser reservados ao protagonismo do corpo social. Em momentos de crise, como agora, quem sempre retorna é o nacionalismo verde-amarelista, a clamar por líderes iluminados e fortes; o sebastianismo salvático; a tal indolência natural do brasileiro; jorros de desobediência civil e insatisfação momentânea; e por aí vai. Ao menos, essa é a imagem dos que desejam ser liderados – o povo é incapaz, que venha o deus.

Trump e nós

Um contraste com a América do Norte pode ajudar a esclarecer, e talvez até mostrar o quanto não estamos tão distantes. A resistência contra Trump, em grande parte, deve-se ao temor de que ele, uma vez no poder, consiga minimizar ou até mesmo eliminar o que nos EUA ainda resta desses espaços institucionais, dessa vez não mais apenas em nome de interesses econômicos de grandes corporações de negócios, mas também em benefício próprio, pessoal – Trump é ele mesmo um imenso magnata, dono de grandes empresas midiáticas, possuidor de empreendimentos financeiros e comerciais no mundo todo.

Ele não apenas representa esses interesses, ele os tem. Concentrar mais poder nas suas mãos é um risco tão grande quanto sua fortuna – ainda mais pelas suas declarações imperialistas: “Make America great again”, diz sua campanha, quer dizer, “Tornar a América grande de novo” – o que isso pode significar? Se conseguir mobilizar o ideal nacionalista, Trump mobilizará o anseio de superar todas as dificuldades e diferenças em torno de si e, com isso, direcionará a política para onde quiser. Será aonde queremos também ir? Será o imperialismo estadunidense compatível com outros ideais nacionais? Se a própria ideia de nação é uma abstração talhada para cegar as massas, parece difícil uma conciliação.

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Thank you for your support

Mesmo tendo consciência desse processo, resta a pergunta: por que ainda insistimos nos mitos personalistas? Por que enfatizamos tanto a figura singular que ocupa a presidência em vez de fortalecer as lideranças coletivas no Congresso e nos partidos? Por que não conseguimos renovar os partidos existentes ou mesmo criar novos partidos?

A voz de Charles Chaplin ainda fala e causa espanto como na primeira vez em que foi ouvida no cinema, mas parece que poucos a ouvem.

DISCURSO

“Sinto muito, mas não quero ser um imperador, não sou pra isso. Não quero governar ou conquistar ninguém. Se pudesse, eu gostaria de ajudar a todas as gentes, judeus, negros, brancos. Todos queremos ajudar uns aos outros, os seres humanos são assim. Todos queremos conviver com a felicidade alheia, e não com a desgraça do outro. Não queremos odiar e desdenhar uns aos outros. Neste mundo, há lugar para todos e a boa terra é rica e pode sustentar a todos.

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O caminho da vida pode ser livre e belo. Mas perdemos o caminho. A ganância envenenou as almas dos homens, pôs o mundo dentro de barricadas com ódio, nos fez marchar a passos de ganso para a desgraça e a sanguinolência. Desenvolvemos a velocidade, mas nos trancafiamos. As máquinas que nos dão abundância nos deixam em necessidade. Nosso conhecimento nos tornou cínicos. Nossa inteligência nos fez duros e insensíveis. Pensamos muito e sentimos muito pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, precisamos de sensibilidade e suavidade. Sem essas qualidades, a vida será violenta e tudo se perderá.

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O avião e o rádio nos aproximaram. A própria natureza dessas invenções clama por bondade nos homens, clama pela fraternidade universal, pela unidade de todos nós. Mesmo agora minha voz alcança milhões no mundo todo – milhões de homens desesperados, mulheres e criancinhas – vítimas de um sistema que faz os homens torturarem e aprisionarem pessoas inocentes. Aos que podem me ouvir, eu digo – não se desesperem. A desgraça que agora cai sobre nós é apenas a passagem da ganância – a amargura dos homens que temem o caminho do progresso humano. O ódio dos homens vai passar e os ditadores vão morrer e o poder que eles tomaram das pessoas retornará às pessoas e, enquanto os homens morrerem, a liberdade nunca perecerá.

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Soldados! Não se submetam aos brutos – homens que desprezam vocês – escravizam vocês – que controlam as suas vidas – que dizem a vocês o que fazer – o que pensar e o que sentir! Esses homens adestram vocês, impõem dietas, tratam vocês como se vocês fossem gado, usam vocês como bucha de canhão. Não se submetam a esses homens antinaturais – homens-máquinas com mentes de máquinas e corações de máquinas! Vocês não são máquinas! Vocês não são gado! Vocês são homens! Vocês têm o amor da humanidade nos corações. Vocês não odeiam! Só os que não são amados odeiam – os não amados e os antinaturais!

Soldados! Não lutem por escravidão! Lutem pela liberdade! No capítulo 17 (do evangelho de) S. Lucas está escrito: “o Reino de Deus está dentro do homem” – não de um único homem ou grupo de homens, mas de todos os homens! Em vocês! Vocês, pessoas têm o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar a felicidade! Vocês, pessoas, têm o poder de tornar esta vida livre e bela, tornar esta vida uma aventura maravilhosa.

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Então, em nome da democracia, vamos usar esse poder! Vamos todos nos unir! Vamos lutar por um mundo novo, um mundo decente que dará aos homens uma chance de trabalhar, que dará o futuro à juventude e a segurança à velhice. Pela promessa dessas coisas, os brutos ascenderam ao poder, mas eles mentem! Eles não cumprem suas promessas; eles nunca cumprirão. Os ditadores livram-se a si mesmos, mas escravizam as pessoas! Ora, vamos lutar para cumprir essa promessa! Vamos lutar para libertar o mundo, para desfazer as barreiras nacionais, varrer com a ganância, com o ódio e a intolerância. Vamos lutar por um mundo racional, um mundo em que a ciência e o progresso levarão à felicidade humana. Soldados! Em nome da democracia, vamos todos nos unir!”

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Blade Runner 2049 aquém da dúvida

Cordiais saudações!

O texto a seguir foi recentemente publicado no Correio da Cidadania. Como o filme ainda está em cartaz, um aviso é necessário: contém spoilers. “Spoiler” é uma expressão em inglês para dizer que certos segredos da trama do filme são revelados – talvez o fim, talvez uma surpresa para o leitor que, ao ver o filme depois de ler o texto, não será mais surpreendido. Não vejo problema nisso, afinal, leitura alguma substitui a experiência do filme. E, para falar a verdade, o segredo de que depende o enredo desse novo Blade Runner fica um tanto óbvio no próprio filme, da metade para o final. Seja como for, está aí o aviso.

O texto está aqui republicado com umas minúsculas alterações corretivas, sem modificar em nada o argumento.

Boa leitura!

* * *

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Em filmes de ficção científica, principalmente aqueles que tratam do fim do mundo ou de algum mundo depois deste nosso, há sempre uma ansiedade com relação ao que será mostrado no fim: para onde iremos? Que teremos nos tornado? Que podemos esperar de nós mesmos? Essas são, no fim das contas, as perguntas fundamentais. Em todo filme, na verdade, a sucessão das imagens cria uma temporalidade própria, chamada por muitos críticos e estudiosos do cinema de fílmica – a cada imagem sucessiva, a cada sequência, a cada quadro, a resposta esperada é adiada, pois é claro que ela deve vir ao final do filme, como se fosse a revelação apocalíptica que dá sentido à história.

Pois bem, essa temporalidade foi exaustivamente explorada pelo que conhecemos como narrativa clássica. No fim do filme, dá-se um fecho à história e um sentido para os espectadores. A satisfação do espectador fica garantida, mesmo se final for desalentador ou catastrófico. Só existe uma única possibilidade de incômodo de fato, de negatividade, de insatisfação do espectador: quando o filme não fecha, resta a impressão de que o sentido é vago ou no mínimo ambíguo. É comum ouvir “esse filme não tem fim” ou “que final esquisito” quando o final do filme não confere um sentido definido à sequência de imagens até ali desenrolada. Sentimos faltar algo. Claro que essa sensação de incompletude pode vir de um filme ruim, um roteiro mal feito, uma cinematografia mal executada. Mas, nos melhores casos, falta algo mesmo e cabe ao espectador pensar que falta é essa – Hitchcock era mestre em deixar ao espectador a tarefa de dar sentido ao que foi presenciado. Os Pássaros (1963) é o exemplo mais famoso.

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De exemplos mais recentes, Blade Runner – O caçador de androides (dir. Ridley Scott, EUA, 1982) marcou época na crise da narrativa cinematográfica clássica. Mesmo adulterado, com um final imposto pelo estúdio, a dúvida permanecia – como saber se somos ou não androides? Deckard é um androide ou um ser humano? Qual o sentido dessa diferença, num mundo em que os humanos parecem máquinas e os robôs parecem mais humanos que nós mesmos? Mais de trinta anos depois, essas perguntas ainda estão sem resposta. Não sabemos o que esperar desse encontro entre os humanos e os cyborgs, o pós- ou o trans-humano ainda é um enigma para nós.

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Essa é a única ambiguidade de Blade Runner 2049, a única pergunta final deixada aos espectadores. Em outras palavras, nada que já não existisse no filme anterior. É pouco. Mesmo porque esse atual filme, ruim, repete chavões cinematográficos do começo ao fim e não consegue lançar dúvida alguma sobre a experiência contemporânea, como o anterior o fizera em seu tempo. Até o manjadíssimo “ele morre no final” está ali.

A comparação com o filme anterior é inevitável. É claro que os filmes subsistem por si, mas a comparação é suscitada pelo próprio filme, que repete o título e o ator principal – Harrison Ford, agora como coadjuvante – em truque comercial que não conseguiu, até agora, evitar o fracasso nas bilheterias. Talvez isso se dê porque, diferentemente do filme de 1982, o de 2017 seja incapaz de provocar qualquer dúvida, incômodo ou distanciamento além do mais raso senso-comum. Nesse sentido, serve muito bem ao status quo e talvez seja mesmo apenas isso que almeje. Visto dessa maneira, é uma obra-prima de conformismo Hollywoodiano, bem coerente com final imposto pelo estúdio ao primeiro Blade Runner.

O que está em jogo aqui, como antes, é uma visão-de-mundo: após o apocalipse, que mundo restará? Pouco, talvez nenhum. Ou talvez o mesmo, se pensarmos culturalmente. Se o filme fosse crítico disso, talvez melhorasse, mas de fato não é. Em 1983, um dos questionamentos mais significativos de Blade Runner era quanto aos papéis de gênero. Se a mulher perfeita é uma androide – jovem, sedutora, desafiadora de início, logo é conquistada, pouco fala, é submissa e no final é salva pelo mocinho – as mulheres ameaçadoras também, com a diferença de que as ameaçadoras são todas exterminadas pelo herói-detetive, típico mau caráter de bom coração. Mas aí está a ambiguidade a mais: o mocinho é ou não um androide? Ele mesmo não é perfeito – ou seria o mais perfeito, coisa que nenhum ser humano é capaz de ser. Aos poucos, a cada origami, a cada imagem de memória, a cada imagem dentro da imagem, o filme construía, assim, um meta-questionamento: somos todos robôs? Este filme pode vir a se tornar realidade?

Tudo isso falta em Blade Runner 2049. A única surpresa para o espectador é um truque de roteiro – não é ele a criança redentora. Ele, na verdade, é o mártir que salvará a redentora, ele é o santo. A esperança está uma mulher, mas uma mulher frágil e assexualizada, salva pelo herói que extermina a outra, a ameaçadora, aquela que faz as vezes de Alex Forrest (Glenn Close) de Atração Fatal (Fatal Attraction, dir. Adrian Lyne, EUA, 1987). Só que, em Atração Fatal, a esposa matava a amante e a traição era dupla, pois ele traía as duas, na verdade; aqui, não há traição alguma, o robô executa fielmente a tarefa que lhe foi destinada, nenhuma consciência é capaz de desviar-lhe da programação prevista. Mesmo nos cyborgs, a ausência de ambiguidade e inconformismo desaparece: nenhum trans-cyborg, nenhuma insatisfação com a própria condição, a não ser da parte da holográfica mulher-perfeita, aquela que para satisfazer ao herói vai da dona de casa à prostituta com uma mera troca de roupa (é um trocadilho, quem vir o filme vai entender). A personagem feminina mais interessante do filme é um Tirésias desperdiçado: em vez do cego capaz de enxergar mais que todos, uma caolha cuja única função é passar a óbvia mensagem da salvação: o mais humanos que podemos ser é morrer pelos humanos. Esta é a tua porta, abra-a. Esta é a parte que te cabe neste latifúndio, tome-a.

A cinematografia é a chave para entender o reacionarismo do filme. Se o anterior imergia os espectadores em imagens de duas dimensões, fazendo-nos questionar a própria ideia de imagem e de plano, este, em 2017, usa o 3D de maneira infantilizada, tentando emular os jogos – os games, como se diz – sem, no entanto, conseguir provocar questionamento algum. Mesclando ao 3D um visual parecido com Mad Max, abusando dos closes e com raros planos abertos, parece querer fazer o espectador a se sentir dentro do filme à força. Com isso, consegue causar apenas a rasteira impressão de que é produto para o streaming em telinhas de celular. Daí que termine sem suscitar qualquer dúvida ou pergunta sobre o encontro do humano com pós-humano. Não deixa, todavia, de dar um sentido a essa falta de problematização: a pós-humanidade-híbrida detém os sonhos da humanidade. Mas ela é frágil e precisa ser protegida. E quem vai fazer isso? O homem, é claro, branco, é claro, uma vez que os negros só são superiores às crianças e à mulher-rendentora, é claro. Mais uma fantasia de resgate do homem branco, como não poderia deixar de ser, é claro. Mas ele não é um cyborg? Sim, é claro, um santo cyborg, salvador da família do homem branco. E esse homem branco, o pai, só pode ser Indiana Jones, é claro.

Mas duvidar por quê, né não? Pois é. É difícil mesmo conviver com dúvidas. Pobres tempos os nossos, em que nem a fantasia parece capaz de duvidar do real.

Cordiais ainda que desiludidas saudações.

DICA: Até 19 de novembro, no Instituto Moreira Salles, os pacientes e curiosos com a temporalidade fílmica podem conferir a videoinstalação de 24 horas, The Clock, de Christian Marclay (https://goo.gl/528Bw1). São incontáveis cenas de cinema e TV que fazem referência ao horário exato do dia em que são projetadas na tela, analisadas num belo e sugestivo texto duvidativo de Lucia Monteiro (https://goo.gl/dTVK4j).

Cassiano Terra Rodrigues é professor de filosofia da PUC-SP, cada vez mais duvidoso das pré-certezas e certo da pontaria a posteriori das dúvidas.

O começo ou o fim da América

Hoje, se fosse vivo, James Baldwin faria 93 anos. Um dos maiores escritores dos EUA no século XX, Baldwin foi também um dos grandes intelectuais ativistas de sua época. Em 1970, ele escreveu uma carta aberta a Angela Davis, então presa, na qual além de expressar solidariedade, reflete sobre o racismo, a militância negra e o significado da democracia nos EUA. Traduzo-a aqui, que eu saiba, pela primeira vez em língua portuguesa.

É um texto memorável e que pode dizer muito a nós, brasileiros, em 2017 – infelizmente, muita coisa não mudou para melhor, muitos problemas permanecem os mesmos. Mas, felizmente, podemos contar com o legado de James Baldwin e Angela Davis.

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Querida Irmã:

Uma pessoa poderia ter esperança de que, a esta hora, mesmo apenas ver correntes sobre a Carne Negra, ou mesmo apenas ver correntes seria uma visão tão intolerável para o povo dos Estados Unidos e traria uma memória tão intolerável que o próprio povo espontaneamente se insurgiria e se livraria dos grilhões. Mas, não, parece que têm orgulho de suas correntes; agora, mais do que nunca, parece que medem sua segurança por correntes e cadáveres.

E então, a Newsweek, defensora civilizada dos indefensáveis, tenta te afogar num mar de lágrimas de crocodilo (“resta ver que tipo de liberação pessoal ela conseguiu”) e te põe na capa, acorrentada.

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Pareces muito solitária – tão solitária quanto, digamos, a esposa judia enviada num camburão para Dachau, ou tão solitária quanto qualquer um dos teus ancestrais, acorrentados todos juntos em nome de Jesus, enviados para uma terra cristã.

Pois bem. Já que vivemos numa época em que o silêncio não é apenas criminoso, mas suicida, tenho feito tanto barulho quanto posso, aqui na Europa, no rádio e na TV – na verdade, acabei de voltar de uma terra, a Alemanha, que se tornou famosa por uma maioria silenciosa, não faz tanto tempo. Pediram-me para falar sobre o caso da Senhorita Angela Davis, e eu o fiz. Muito provavelmente, um exercício de futilidade, mas não se deve deixar passar uma oportunidade.

Sou mais ou menos uns vinte anos mais velho do que és, sou, portanto, daquela geração sobre a qual George Jackson arrisca dizer que “não há irmãos sadios – nenhum”. De modo algum sou capaz de discordar dessa especulação (de toda forma, não sem descer ao que, no momento, seriam sutilezas irrelevantes), pois sei muito bem o que ele quer dizer. Minha própria saúde é certamente bastante precária. Ao considerar-te, e a Huey, a George e (principalmente) a Jonathan Jackson, comecei a compreender o que poderias ter pensado quando falaste dos usos que poderíamos atribuir à experiência do escravo. Parece-me que o que aconteceu, falando uma forma exageradamente simples, é que toda uma geração de pessoas avaliou e absorveu a história dos escravos e, nessa ação tremenda, essas pessoas libertaram-se dela e nunca mais serão vítimas. Isso pode parecer uma coisa estranha, indefensavelmente impertinente e insensível de dizer para uma irmã que está na prisão lutando pela vida – por todas as nossas vidas. No entanto, ouso dizê-lo, pois penso que talvez não me compreenderás mal, e, afinal, não o digo da posição de um espectador.

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Estou tentando sugerir que tu – por exemplo – não pareces ser a filha de teu pai da mesma maneira que eu sou o filho de meu pai. No fundo, as expectativas de meu pai e as minhas eram as mesmas, as expectativas de sua geração e da minha eram as mesmas; e nem a imensa diferença em nossas idades nem a mudança do Sul para o Norte conseguiram alterar essas expectativas ou tornar nossas vidas mais viáveis. Pois, de fato, para usar um palavreado brutal daquele tempo, a linguagem interior do desespero, ele era apenas um negro – um trabalhador pregador negro, e eu também. Eu mudei de assunto, mas isso não é mais importante aqui do que o fato de que alguns pobres espanhois tornam-se ricos toreadores, ou de que alguns garotos Negros pobres enriquecem – boxeadores, por exemplo. Isso raramente ou nunca permitiu às pessoas mais do que uma grande catarse emocional, embora eu tampouco pretenda parecer condescendente com isso. Mas quando Cassius Clay tornou-se Muhammad Ali e recusou vestir aquele uniforme (e sacrificou todo aquele dinheiro!), isso causou um impacto muito diferente nas pessoas e teve início uma espécie muito diferente de instrução.

O triunfo Americano – no qual sempre esteve implícita a tragédia Americana – estava em fazer as pessoas Negras desprezarem a si mesmas. Quando eu era pequeno, eu desprezava a mim mesmo; não sabia fazer melhor. E isso significava, embora inconscientemente, ou contra minha vontade, ou com grande dor, que eu também desprezava meu pai. E minha mãe. E meus irmãos. E minhas irmãs. Quando eu estava crescendo, as pessoas negras estavam se matando umas às outras toda noite de sábado na avenida Lenox; e ninguém explicou a elas, ou a mim, que era intencional que elas assim agissem; que elas estavam cercadas onde estavam, como animais, para que não considerassem a si mesmas mais do que animais. Tudo sustentava esse sentido de realidade, nada o negava: e assim, quando chegava a hora de ir trabalhar, uma pessoa já estava pronta para ser tratada como um escravo. Assim uma pessoa estava pronta, quando chegavam os terrores humanos, a se curvar diante de um Deus branco e implorar a Jesus pela salvação – esse mesmo Deus branco que era incapaz de levantar um dedo para fazer um mínimo para te ajudar a pagar um aluguel, incapaz de ser acordado a tempo de te ajudar a salvar as tuas crianças!

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É claro que sempre existem mais coisas numa pintura do que pode ser rapidamente visto, e nisso tudo – e apesar disso tudo – gemer e lamentar, observar, calcular, bancar o palhaço, sobreviver e levar a melhor – uma tremenda força estava em gestação, e ela é parte do nosso legado hoje. Mas esse aspecto particular de nossa jornada começa agora a ficar para trás. O segredo está revelado: somos homens!

Mas a articulação franca e aberta desse segredo amedrontou a nação até a morte. Eu queria poder dizer “até a vida”, mas isso é exigir demais de um agregado desorganizado de pessoas deslocadas que ainda estão como gado em seus vagões cantando “Onward Christians Soldiers”. A nação, se os Estados Unidos forem uma nação, não está minimamente preparada para esse dia. Este é o dia que os americanos nunca esperaram ou desejaram ver, não importa o quão piamente declarem sua crença no progresso e na democracia. Essas palavras, agora, em lábios americanos, tornaram-se uma espécie de obscenidade universal: pois esse infelicíssimo povo, fortemente crente na aritmética, nunca esperou ser confrontado pela álgebra de sua história.

Uma maneira de aferir a saúde de uma nação, ou de discernir o que ela realmente considera como seus interesses – ou a que ponto pode ser considerada como uma nação e não como uma coalisão de interesses particulares – é examinar as pessoas que ela elege para representá-la ou protegê-la. Uma olhadela sobre os líderes americanos (ou figuras de ponta) transparece que a América está no limite do caos absoluto, sugerindo também o futuro que os interesses americanos, se não a massa do povo americano, parece desejar consignar aos negros (com efeito, um olhar ao nosso passado mostra isso). É claro que para a massa de nossos compatriotas (nominais), somos todos dispensáveis. E os senhores Nixon, Agnew, Mitchell e Hoover, sem falar, naturalmente, no caso perdido de Em cada coração um pecado, Ronnie Reagan, não hesitarão um instante sequer em levar adiante o que insistem ser a vontade popular.

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Mas o que, nos E.U.A., é a vontade popular? E quem, dos acima mencionados, é o povo? O povo, quem quer que seja, sabe tanto sobre as forças que colocaram os senhores acima citados no poder quanto sabem sobre as forças responsáveis pela matança no Vietnã. A vontade popular, nos E.U.A., sempre esteve à mercê de uma ignorância não apenas fenomenal, mas também sagrada e sacramente cultivada: o que de melhor pode ser usado por uma economia carnívora que democraticamente mata e vitimiza brancos e Negros igualmente. Mas a maioria dos brancos americanos não ousa admitir isso (embora suspeitem) e esse fato contém um perigo mortal para os Negros e uma tragédia para a nação.

Ou, para dizer de outra maneira, enquanto os americanos brancos refugiarem-se na sua branquitude – enquanto permanecerem incapazes de se livrarem dessa mais monstruosa armadilha – eles permitirão que milhões de pessoas sejam assassinadas em seu nome e serão manipulados por aquilo que pensarão ser uma guerra racial, justificando-a e sendo por ela rendidos. Enquanto sua branquitude interpuser uma distância tão sinistra entre eles mesmos e sua própria experiência e a experiência dos outros, eles nunca se sentirão suficientemente humanos, suficientemente dignos, para se tornarem responsáveis por si mesmos, pelos seus líderes, seu país, suas crianças ou seu destino. Perecerão em seus pecados (conforme dissemos certa vez na nossa igreja negra) – isto é, nas suas ilusões. E isso está acontecendo, nem é preciso dizer, por toda parte à nossa volta.

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(c) Henri Huet/AP

Apenas um punhado dentre os milhões de pessoas nesse vasto lugar estão cientes de que o destino pretendido para ti, irmã Angela, e para George Jackson, e para os inúmeros prisioneiros nos nossos campos de concentração – pois é o que são – é um destino que está prestes a engolfá-los também. Para as forças que governam este país, as vidas brancas não são mais sagradas do que as Negras, como muitos e muitos estudantes estão descobrindo, conforme provam os cadáveres de americanos brancos no Vietnã. Se o povo americano é incapaz de enfrentar seus líderes eleitos pela redenção de sua própria honra e pelas vidas de seus próprios filhos, nós, os Negros, os que somos as crianças ocidentais mais rejeitadas, podemos esperar muito pouca ajuda nas suas mãos; o que, afinal, não é nada novo. O que os americanos não percebem é que uma guerra entre irmãos, nas mesmas cidades, no mesmo solo, não é uma guerra racial, mas uma guerra civil. Mas a ilusão americana não é tão-só que seus irmãos são todos brancos, mas que os brancos são todos seus irmãos.

Que seja. Não podemos acordar esse dorminhoco, e sabe Deus como tentamos. Temos de fazer o que podemos e fortificar e salvar uns aos outros – não estamos nos afogando numa auto-displicência apática, sentimo-nos suficientemente dignos para enfrentar até mesmo forças inexoráveis para mudar nosso destino e o destino de nossos filhos e a condição do mundo! Sabemos que um homem não é uma coisa e não pode ser posto à mercê das coisas. Sabemos que o ar e a água pertencem a toda a humanidade e não apenas aos industriais. Sabemos que um bebê não vem ao mundo apenas para ser instrumento do lucro de alguém. Sabemos que a democracia não significa a coerção de todos para uma mediocridade letal e, no fim, malvada, mas, sim, a liberdade para que todos possam aspirar ao melhor que há ou que jamais houve em si mesmo.

Sabemos que nós, os Negros, e não apenas nós, os Negros, fomos e somos vítimas de um sistema cujo único combustível é a ganância, cujo único deus é o lucro. Sabemos que os frutos desse sistema foram a ignorância, o desespero e a morte, e sabemos que o sistema está perdido porque o mundo não pode mais se dar ao luxo dele – se é que na verdade um dia pôde. E sabemos que, para a perpetuação desse sistema, todos nós fomos impiedosamente brutalizados e apenas mentiras nos foram contadas, mentiras sobre nós mesmos e nossos próximos e nosso passado, mentiras sobre o amor, a vida e a morte, de modo que tanto a alma quanto o corpo foram aprisionados no inferno.

A enorme revolução na consciência Negra acontecida na nossa geração, minha querida irmã, significa o começo ou o fim da América. Alguns de nós, brancos e Negros, sabemos como é caro o preço que já foi pago para fazer existir uma nova consciência, um novo povo, uma nação sem precedentes. Se sabemos e nada fazemos, somos piores do que os assassinos pagos em nosso nome.

Se sabemos, então temos de lutar pela tua vida como se fosse a nossa – e ela é – e com nossos próprios corpos tornar intransponível o corredor para a câmara de gás. Pois, se vierem para te buscar de manhã, virão nos buscar à noite.

Portanto: paz.

Irmão James.

19 de novembro de 1970.

 

QUEM É O “NATIVO”/ QUEM É O “ESTRANGEIRO ILEGAL”?

O texto a seguir é o registro de uma conversa entre um artista performático mexicano e um nativista radical. Seu autor é um dos participantes da conversa, o artista Guillermo Gómez-Peña, que o escreveu originalmente em 2002, para a turnê Red America, do grupo La Pocha NostraO texto acabou de ser reescrito neste ano de 2017, para a era Trump, como no final ficará claro ao leitor.

Traduzo-o aqui porque, afinal de contas, a ignorância, o ódio e o medo não são privilégios nacionais. Infelizmente.

 

 

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O contexto: Durante um debate que tive em 2002 com um autodenominado “nativista radical”, numa estação de rádio no Arizona, quem nos recebia fez a seguinte pergunta: “Quem é o nativo? Quem é o estrangeiro ilegal?” Nunca imaginei que figuras marginais como esse feroz minute man* um dia chegariam a ocupar o escritório do presidente dos E.U.A.

Vamos chamar esse nativista de Joe. Ele me pediu para lhe dar uma razão forte, por que os EUA não deveriam fechar completamente suas fronteiras com o México.

Minha primeira resposta foi sarcástica: porque eu acabei de trocar meu green card pelo gold card. Ele não entendeu. Minha segunda resposta foi a seguinte:

“Para mim, o ‘problema’ não é a imigração. … é a histeria com a imigração, uma forma de racismo coletivo. A imigração é o subproduto da globalização e, como tal, é irreversível. Atualmente, um terço da humanidade vive fora de suas terras de origem e longe de sua cultura e línguas originais.” Seu rosto não demonstrava expressão alguma.

“E por que isso? – ele disse. Justamente porque os SEUS países de origem estão fodidos e VOCÊS querem vir e viver no primeiro mundo. Por que precisamos deixar vocês entrarem? Não somos uma agência humanitária internacional. Nós estamos saturados nessa merda!”

Eu respondi: “Você quer dizer que a estátua da liberdade teve um colapso nervoso? Duvido. Acho que a razão porque mexicanos como eu estão vivendo nos E.U.A., a SUA América, é porque as nações/estados estão ultrapassados e disfuncionais. E as estruturas legais às quais pertencem não conseguem responder às novas complexidades da época.”

Sua réplica à minha resposta foi: “Não entendo uma palavra do que você está dizendo. O fato é que vocês, estrangeiros, estão aqui ilegalmente. Você sabe quantos ‘estrangeiros’ estão aqui, ILEGALMENTE, no meu país?”

Respirei fundo e respondi no mesmo mono-tom-Chicano-cool que uso quando começo ficar pê-da-vida:

Bem, tudo depende de a quem você pergunta: um sociólogo anglo vai dizer 11 milhões. Um ativista chicano vai responder que nenhum. Mas se você perguntar a um ancião indígena, americano nativo, ele poderia dizer 330 milhões, toda a população dos EUA, excluindo a população indígenas, e tecnicamente ele está certo.

Ele não entendeu o meu argumento. A inteligência não era exatamente seu forte. Ele repetiu sua afirmação num volume muito mais alto: “o fato é que vocês estrangeiros estão aqui ilegalmente!”

“Ilegalmente?… Para mim, a imigração não é uma questão legal, mas humanista e ética. Nenhum ser humano é “ilegal”, ponto. Todos os seres humanos, com ou sem documentos, pertencem à espécie humana, a nossa espécie, e se ELES precisam de nossa ajuda, somos obrigados a dá-la. Isso se chama ser humano – um conceito que você pode achar bem “estranho” e “estrangeiro” em si. Nesse contexto, a nacionalidade se torna secundária. A dor deles é a nossa e esse é seu destino.”

“Que (bip) é essa que você quer dizer?” ele perguntou agressivamente.

“Assim como eu me tornei um imigrante um dia, você talvez venha a se tornar um no futuro. Todos somos imigrantes em potencial, carnais.”

Ele me olhou com nojo e depois de uma longa pausa, disse: “Não me venha com essa merda de ‘carnal’. Vocês estão determinados a destruir a nossa democracia e só porque nós damos a vocês a liberdade e os tickets de alimentação para fazer isso. O que NÓS fizemos a VOCÊS? Por que vocês nos odeiam tanto?”

Nesse momento, percebi que não havia muito espaço para a negociação intelectual com ele. Seus argumentos eram rigorosamente emocionais. Ele estava lutando pela sua vida, seu país interior e seu senso de pertencimento a um mundo imaginário, uma América Branca pré-contato que nunca existiu. Ele era o alienígena real, perdido num planeta estrangeiro multiracial e multicultural onde a cultura de fronteira e a hibridez são a norma e o Spanglish é a lingua franca.

Eu me compadeci dele e tentei, mais uma vez, estabelecer um diálogo sério com ele:

“Você sabe, senhor, em resposta à sua questão ‘o que VOCÊS fizeram para NÓS’, por favor, escute-me com cuidado:

A imigração para os E.U.A. é o resultado direto do comportamento econômico, político e militar dos E.U.A. para com outros países: estamos aqui exatamente porque vocês estiveram lá antes. A maioria dos imigrantes, eu inclusive, estamos inconscientemente buscando pela raiz de nosso desespero. E penso que a encontrei exatamente agora, situada na sua amnésia histórica e no seu racismo primitivo. É um prazer conhecê-lo.”

Levantei-me e lhe estendi minha mão direita. Ele a rejeitou.

Ele visivelmente tinha medo do meu sotaque, da minha pele marrom, das minhas tatuagens, meu delineador de olhos, meus brincos. Nos olhos dele, eu era um cripto-mamífero: um gigantesco chihuaha raivoso transformando-se em Godzila e destransformando-se, usando um chapéu de mariachi.

Ele saiu do estúdio da rádio ainda mais convencido de que “nós” éramos a raiz de todas as moléstias sociais e econômicas dos E.U.A. dele, um país em que nunca estive.

 

Naquela noite, escrevi no meu diário: “Haverá uma saída dessa desse impasse? Será melhor no futuro?” Não tinha ideia de que, 14 anos mais tarde, um homem chamado Donald Trump de fato ajudaria a darmos um salto para uma resposta.

*Nota: Minuteman era a denominação dada aos participantes de milícias independentes na época da Independência dos E.U.A., conhecidos por sua alegada capacidade de se organizarem para a batalha “num minuto”. Essas milícias eram formadas por fazendeiros e homens comuns das cidades.

Martin Luther King, Jr.

Em 4 de Abril de 1967, Martin Luther King, Jr. fez um discurso na Igreja de Riverside, na cidade de Nova Iorque, contra a guerra do Vietnam, intitulado “Além do Vietnam“. Talvez este seja seu discurso mais pungente, e não o famoso “Eu tenho um sonho“, de 1963.

Martin Luther King Jr.

Pela sua teologia, o pastor e pregador Martin Luther King, Jr. incomodava à esquerda, cujos membros ateístas e materialistas tinham dificuldade em dialogar com a espiritualidade e a religiosidade populares. Pelas críticas abertas e cada vez mais radicais ao capitalismo e à sua intrínseca regulação combinatória de racismo e classismo, o socialista democrático Martin Luther King, Jr. incomodava ainda mais à direita, a ponto de J. Edgar Hoover enviar-lhe cartas forjadas e anônimas sugerindo o suicídio.

Exatamente um ano depois desse discurso, em 4 de Abril de 1968, ele foi assassinado por um franco-atirador.

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Vista parcial do cadáver de Martin Luther King, Jr. no palanque montado para ele discursar no Motel Lorraine,

O status quo contra o qual ele lutou a vida toda esforça-se para transformá-lo num santo pacifista, nem de esquerda nem de direita, desinfetado de toda potencial ameaça, um “pai Tomás”, moldando sua imagem como se fosse um inofensivo “papai noel”, num processo chamado por Cornel West de “Santa Claus-ification” de Martin Luther King, Jr. Elogios à sua vida e sua luta frequentemente o colocam como o pacifista convicto antípoda a Malcolm X, esse sim, representante de uma terrível e violenta ameaça aos valores estadunidenses. A história oficiosa de Martin Luther King Jr. tenta retratá-lo como um herói limpo e puro que morreu para que o racismo e os direitos civis dos negros fossem garantidos. Um santo que seguiu o exemplo de Cristo, como cabe bem a um pastor.

Isso quer dizer que a disputa simbólica de seu legado ainda está aberta: que sentido teve sua luta? Por que foi assassinado?

No entanto, King não lutou apenas contra a injustiça racial, mas também em favor da justiça econômica e contra o militarismo, principalmente a guerra do Vietnã, identificando um vínculo essencial entre a perspectiva anti-racista e a perspectiva classista. Por causa disso, em seus últimos anos de vida, ele teve de enfrentar não apenas os ataques dos segregacionistas reacionários do Sul dos E.U.A., mas também o bloqueio e a chantagem dos manda-chuvas do Partido Democrático e até mesmo a resistência de outros líderes do movimento pelos direitos civis que ele ajudou a criar, pois o consideravam uma real ameaça ao sistema econômico estadunidense. De fato, vindo de um líder popular com tanta influência e com a sua envergadura, soa bastante revolucionária uma declaração como a seguinte:

Estamos agora fazendo exigências que terão um custo para a nação. Você não pode falar de resolver o problema do negro sem falar de bilhões de dólares. Você não pode falar em acabar com as favelas [slums] sem antes dizer que o lucro tem de ser tirado delas. Aí é que você está realmente incomodando e pisando em terreno perigoso, porque com isso você está se metendo com pessoas, você está se metendo com os barões da indústria. Ora, isso quer dizer que estamos pisando em correnteza forte, porque isso realmente significa que estamos dizendo que há algo de errado com o capitalismo. Tem de existir uma melhor distribuição de renda, e talvez os E.U.A. precisem mudar para um socialismo democrático.

Declarações como essa não constam de nenhum discurso, nenhum escrito seu. Isso facilita a apropriação simbólica de seu legado pela via de uma direita muito reacionária, que o usa contra o povo pobre, de origem afro-indígena, mestiço e periférico, ao qual ele pertencia e defendia. Hoje, o discurso em defesa dos direitos humanos, da igualdade racial e da justiça social é facilmente desqualificado como ilegítimo, pois a defesa a igualdade de oportunidades nunca teria sido problemática: “antigamente ninguém reclamava, antigamente as pessoas trabalhavam e não ficavam de mimimi”. Mas o fato é que não: quem hoje supõe uma igualdade e uma justiça que nunca existiram detesta ouvir falar de soluções e ações políticas, pois os problemas são considerados superficiais ou mesmo inexistentes. O discurso de ódio torna-se moeda corrente e a recusa da verdade histórica, uma couraça. Dada essa situação, não teria sido melhor Martin Luther King, Jr. ter sido mais explícito?

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Sabe-se que ele não gostava de explicitar seu socialismo e até mesmo impedia que o gravassem defendendo uma posição explicitamente socialista. O trecho acima, segundo seu biógrafo Michael Eric Dyson, é a transcrição de um dos raros registros sonoros por ele autorizados. Segundo Dyson, Martin Luther King, Jr. não queria, em primeiro lugar, ter de explicar a todo momento que não era um comunista e, com isso, desviar a atenção dos assuntos realmente importantes. Entendendo o estrago que poderia ser causado à sua credibilidade pelas poderosas campanhas mediáticas de difamação e pelas táticas sorrateiras usadas pelo FBI contra ele, tanto no plano da vida pública quanto no da vida privada, ele habilmente evitava ser rotulado, e, com isso, perder legitimidade. Seu discurso político estava sujeito a chantagens e ataques que jamais preocupariam seriamente os brancos da esquerda estadunidense, fosse por serem brancos, fosse por pertencerem a famílias ricas. Para usar as chavões atuais, nos anos de 1950 e 1960, o lugar de classe protegia o lugar de fala dos brancos, tanto os da esquerda como os da direita. Não que os comunistas brancos não fossem verdadeiramente comunistas. Mas sua adesão aos ideais políticos não fora construída da mesma forma. Nos EUA daquela época, até mesmo exprimir-se em público sem o consentimento dos brancos já seria motivo, em certos lugares, para qualquer pessoa de origens africanas ser linchada e assassinada – imagine-se, então, defendendo ideias socialistas!

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Martin Luther King, Jr. soube compreender muito bem essa situação. Seu radicalismo político cresceu com sua experiência militante. Desenvolvendo-se no enfrentamento brutal da violência racista e classista, e não por meio de constatações teóricas, sua adesão a ideais socialistas evidencia-se nos seus últimos discursos. Mas ele também sabia que, por ser quem era e por ter vindo de onde veio, sua palavra tinha de respeitar limites próprios:  para ser compreendido, aceito e fazer jus às origens das comunidades religiosas afro-estadunidenses, com sua mistura bastante peculiar de escatologia, transcendentalismo e resistência, ele não podia falar como um branco. Entre seus próprios companheiros ele a aceitação de suas ideias sempre foi difícil e parcial, e esse ponto permanece ainda ocultado nas suas representações. Mesmo uma representação que o humaniza e não esconde suas falhas morais, como o filme Selma – uma luta pela igualdade (dir. Ava DuVernay, E.U.A., 2014), detém-se a um momento antes de sua radicalização socialista. Ao retratar as dificuldades da organização de uma marcha de protesto no Alabama, em 1965, o filme mostra a infidelidade de Martin Luther King, Jr. sem tergiversar, e, com isso, ressalta sua responsabilidade na vida pública ao mesmo tempo que sua irresponsabilidade privada, pessoal. Martin Luther King, Jr. não sobressai no filme como um herói, mas como líder de uma ação coletiva variada, muitas vezes incoerente, mas consciente e autodeterminada. Suas falhas pessoais não o impedem de agir politicamente e essa talvez seja a lição a ser tirada do filme: para seguir adiante, é preciso assumir as próprias contradições.

Imagem do filme Selma, representando uma cena de intimidade de Martin Luther King, Jr. [David Oyelowo], com sua mulher, Coretta Scott King [Carmen Ejogo].

Mas Martin Luther King, Jr., nascido e criado numa dessas comunidades do Alabama, conseguia entender com clareza algo que muita gente da esquerda ainda hoje não consegue entender, lá como aqui também. Ele entendeu que para ganhar vida e frutificar entre as pessoas – essas mesmas que a esquerda tenta alcançar – uma ideia não precisa vir com etiqueta. Aqui, é a vida do homem que quando criança foi espancado pelo próprio pai, que teve dúvidas quanto a si mesmo e quase se suicidou por isso, e que mais tarde também duvidou dos dogmas, mas no fim acabou se convencendo da verdade irrefragável dos interesses mais elevados do espírito humano – é essa vida que o faz superar e ignorar muros e murros para tornar-se o orador religioso que transmite ideias poderosas com palavras fortes sem com isso repetir cartilhas ideológicas – até os ouvintes em princípio mais duvidosos tornavam-se convictos de suas ideias. A transparência de sua linguagem atesta esse poder vital: suas palavras desvelam a mais nítida, decidida e sincera fé que um ser humano pode ter, a fé na verdade e na justiça, a fé nos direitos e na dignidade humana.

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Um pouco dessa fé está nas palavras ora traduzidas desse discurso, que ficou conhecido como o discurso da revolução de valores.

Estou convencido de que, se é para ficarmos do lado certo da revolução mundial, nós, como uma nação, temos de passar por uma radical revolução de valores. Temos de iniciar rapidamente a mudança de uma sociedade “orientada-para-coisas” para uma sociedade “orientada-para-pessoas”. Quando as máquinas e computadores, os motivos de lucro e os direitos de propriedade são considerados mais importantes do que as pessoas, os trigêmeos gigantes do racismo, do materialismo e do militarismo são incapazes de ser conquistados.

Uma verdadeira revolução de valores logo nos fará questionar a equidade e a justiça de muitas das nossas políticas do passado e do presente.

A verdadeira compaixão é mais do que dar uma esmola para um mendigo. Uma verdadeira revolução de valores logo examinará com desconforto o flagrante contraste entre pobreza e riqueza. Com correta indignação, ela cruzará os oceanos e verá capitalistas individuais do Ocidente investindo imensas quantias de dinheiro na Ásia, na África e na América do Sul, apenas para aproveitar os lucros sem se preocuparem com a melhoria social dos países, e então dirá: “Isso não é justo”. Ela verá nossa aliança com os latifundiários da América Latina e dirá “Isso não é justo”. A arrogância do Ocidente, de sentir que tem tudo para ensinar a eles e nada para aprender com eles não é justa.

Uma verdadeira revolução de valores porá as mãos na ordem do mundo e dirá da guerra: “Essa maneira de resolver as diferenças não é justa”. Esse negócio de queimar seres humanos com napalm, de encher nossos lares [aqui] na nação com orfãos e viúvas, de injetar drogas venenosas de ódio nas veias de pessoas comuns e benévolas, de mandar de volta para casa homens fisicamente aleijados e psicologicamente transtornados vindos de campos de batalha escuros e sangrentos, isso não pode ser reconciliado com a sabedoria, a justica e o amor. Uma nação que continua ano após ano a gastar mais dinheiro na defesa militar do que em programas de estímulo social aproxima-se da morte.

Essa espécie de revolução positiva de valores é nossa melhor defesa contra o comunismo. A guerra não é a resposta. O comunismo nunca será derrotado pelo uso de bombas atômicas ou armas nucleares. […] Não devemos nos envolver num anticomunismo negativo, mas, antes, numa pressão positiva em favor da democracia, percebendo que nossa maior defesa contra o comunismo é partir para ação ofensiva em nome da justiça. Com a ação positiva, temos de remover as condições da pobreza, da insegurança e da injustiça que são o solo fértil em que a semente do comunismo cresce e se desenvolve.

 Nossos tempos são tempos revolucionários. Por todo o globo, os homens estão se revoltando contra velhos sistemas de exploração e opressão, e, das feridas de um mundo frágil, novos sistemas de justiça e igualdade estão nascendo. Os descamisados e os descalços da terra estão se insurgindo como nunca antes. As pessoas que estavam sentadas na escuridão viram uma grande luz. Nós, no Ocidente, temos de apoiar essas revoluções.

É de fato triste que, por causa do conforto, da complacência, de um medo mórbido do comunismo e da nossa tendência para nos ajustarmos à injustiça, as nações Ocidentais, as mesmas que deram início à grande parte do espírito revolucionário do mundo moderno, tenham agora se tornado as maiores anti-revolucionárias.

Isso levou muitos a sentir que somente o marxismo tem um espírito revolucionário. Portanto, o comunismo é um juízo contrário ao nosso fracasso na realização da democracia e no prosseguimento das revoluções que iniciamos.

Nossa única esperança, hoje, está na nossa capacidade de recapturar o espírito revolucionário e, indo por um mundo às vezes hostil, declarar hostilidade eterna à pobreza, ao racismo e ao militarismo. Com esse poderoso comprometimento, ousadamente desafiaremos o status quo e os costumes injustos, e, com isso, anteciparemos o dia em que “todo vale será exaltado, e todo monte e todo outeiro será abatido; e o que é torcido se endireitará, e o que é áspero se aplainará” [Isaías, 40: 4].

Uma genuína revolução de valores significa, em última análise, que nossas lealdades devem se tornar ecumênicas e não seccionais. Toda nação, agora, deve desenvolver uma lealdade predominante à humanidade como um todo para preservar o melhor em suas sociedades individuais.

Esse chamado à um companheirismo mundial que eleva a preocupação com o próximo além de tribo, raça, classe e nação individual é, na realidade, um chamado à um amor incondicional e global por toda humanidade. Esse conceito, frequentemente mal-compreendido e mal-interpretado pelos Nietzsches do mundo como um impulso fraco e covarde, tornou-se agora uma necessidade absoluta para a sobrevivência do homem.

Quando falo de amor, não falo de uma resposta sentimental e fraca. Não falo dessa força que é apenas uma tolice emotiva. Falo daquela força que todas as grandes religiões compreenderam como o supremo princípio unificador da vida. O amor é de alguma forma a chave que destranca a porta que leva à realidade última. Essa crença Hindu-Islâmica-Cristã-Judaica-Budista acerca da realidade última é belamente resumida na primeira Epístola de S. João: “amemo-nos uns aos outros; porque o amor é de Deus; e qualquer que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.
Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor. […] se nos amamos uns aos outros, Deus está em nós, e em nós é perfeito o seu amor.” [João 4: 7-12]. Esperemos que esse espírito torne-se a ordem do dia.

De onde vêm as personagens da Ilíada?

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Esse é um mapa dos lugares de origem de todas as personagens da Ilíada.

A Ilíada narra a Guerra de Troia, supostamente acontecida entre os séculos 11 e 12 antes da era cristã e uns 400 ou 500 anos antes de Homero, a quem a tradição atribui a autoria do épico.

Para os padrões atuais, a Grécia é um território pequeno. Mas, se pensarmos na época do poema, o mapa é surpreendente: as personagens estavam muito espalhadas por um território vastíssimo. Mais ainda quando pensamos na dificuldade da mobilidade. Para viajar, antes do século XIX, os humanos dependiam das próprias pernas, de cavalos, pequenas embarcações e não muito mais q isso. Só com a locomotiva a vapor isso mudou, há menos de 200 anos.

Será o mapa um retrato preciso? Ou será q Homero povoou a Ilíada com personagens de todo canto para conseguir atingir um público maior, suscitando, assim, um sentimento de pertença em gentes dos lugares os mais distantes?

 

 

A verdade da pós-verdade

O texto a seguir foi recentemente publicado no Correio da Cidadania, com o título de “A verdade da política da pós-verdade“, aqui ligeiramente modificado, apenas para resumir a ideia principal.

Com a recente notoriedade da teoria dos fatos alternativos, creio que o texto não perdeu a ocasião.

Espero que a escrita não seja enfadonha a ponto de obscurecer o argumento.
Cordiais saudações e boa leitura.

* * *

Agradeço a José Crisóstomo de Souza e Adriana Silveira pelas sugestões que me permitiram melhorar o texto. A responsabilidade total pelo escrito permanece minha.

Como assim pós?

Em 2016, “pós-verdade” tornou-se tão comum que foi escolhida a palavra do ano pelo dicionário Oxford. A justificativa é uma expansão do significado de “pós”. O prefixo deixou de significar apenas depois de, sendo usado também para demarcar o sentido de “próprio de uma época em que certas ideias e conceitos perderam importância”. Se nossa época é a da pós-verdade, então a verdade para nós não importa. Pouca gente talvez discorde de que a política é o palco maior dessa desimportância. Constatamos: nos nossos tempos, a verdade se tornou irrelevante, os fatos se tornaram irrelevantes. Mas, pergunto, em nome de quê?

As declarações de Corey Lewandowski, ex-coordenador da campanha de Trump, não deixam dúvidas: o “povo americano” entendeu que Trump é como qualquer pessoa comum, “ às vezes – quando você conversa com as pessoas, por exemplo, à mesa do jantar ou num bar –

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Tabela da pós-verdade

você vai dizer coisas e às vezes você não tem todos os fatos para sustentar o que diz”. Pouco importa se Trump diz verdades ou não, importa quem vai acreditar nele, importa o efeito que suas declarações provocam, o sentimento causado nas pessoas pelo discurso. Trump conseguiu causar efeito, não há como negar. Sua campanha explorou à exaustão a persona dele como um sem noção que fala todo tipo de barbaridades sem freio. Isso o aproximou de muita gente comum, deu a impressão de que ele é um cara qualquer. O problema é que Trump não é qualquer um num bar e a eleição presidencial dos EUA não é o jantar de sábado na casa da vovó. Muita gente simplesmente aceitou suas declarações sem procurar compreendê-las – e por que deveriam, se não são verdadeiras mesmo? Mas, por outro lado, ele diz o que muita gente quer dizer e não pode, então, na cabeça dessa gente que com ele concorda, se não são verdadeiras, deveriam ser. Né não?

Fica fácil entender: quanto mais a política torna-se exageradamente emotiva e irracional, mais será recusada e invalidada. Com o aumento de votos nulos, brancos e abstenções, sequer o princípio do voto da maioria pode ainda ser sustentado. A própria ideia de votos “válidos” é uma falácia: a soma dos votos dos primeiros candidatos sequer alcança os votos nulos e em branco. Exemplos não faltam, lá como aqui, ali, acolá. A desilusão com as falhas da democracia representativa em moldes burgueses elege há anos um candidato chamado Ninguém, talvez descendente do mesmo Ninguém que furou o único olho do ciclope Polifemo.

Chi vuol esser lieto, sia; di doman non c’è certezza

Mas a mentira sempre fez parte da política, não é verdade? Ao menos desde Maquiavel, sabemos que mentir faz parte do jogo do poder. Sem jamais ter se comprometido com o princípio rasteiro que lhe garantiu lugar na história universal da infâmia, ele defendia, sim, que certos fins podem justificar certos meios: conforme as circunstâncias, é útil ser pontualmente imoral. Não se sustenta a leitura, apressada e superficial, de que ele entendia a política como um âmbito de amoralidade no qual todos os valores são relativos conforme os interesses do momento. Maquiavel jamais defenderia a mentira, a traição e a violência como equivalentes à verdade, à lealdade e à vida, na política ou em qualquer outro domínio. Para ele, é fundamental reconhecer a imoralidade de certas ações sem escamoteá-la, porque se as circunstâncias exigirem é útil servir-se delas.

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Essa ilustração de uma raposa vestida de monge lendo um livro está num Livro de Horas do século XV. Do acervo do Museum Meermanno-Westreenianum.

No entanto, imoralidades são autorizadas apenas em nome de um bem maior, que ele identificava, na sua época, à unificação da Itália segundo princípios republicanos. A mentira pressupõe a verdade, ela não diminui sua importância, ao contrário, é necessário saber distinguir muito bem uma da outra, inclusive porque sem isso seria impossível saber quando e como mentir. E mais do que mentir e cometer violências, Maquiavel propõe o uso da inteligência contra a ferocidade cega dos inimigos: para temperar a fúria e a força dos leões, uma boa dose de astúcia própria das raposas é sempre valiosa.

O que temos hoje é muito diferente. O blefe domina o que hoje chamam de política e nivela tudo pela sua régua. Mas a quem interessa igualar a ação política ao blefar? Diferentemente do que temos hoje, a política (ou a grande política, se falarmos com Gramsci) sempre teve a verdade por princípio, como atividade de definição das prioridades coletivas, das finalidades sociais, das metas. Desde Platão, o controle da vida é um problema político inevitável e as perguntas postas em público sempre foram: controlar a vida em nome de quê? Qual o objetivo? Quando interesses não explícitos passam a ser mais determinantes do que interesses públicos, a política perde terreno para a administração do imediato. O blefe passa, assim, ao primeiro plano.

A persona Trump evidencia esse movimento. A política se dá no domínio do puro efeito discursivo, da mera enunciação. Como sabemos, falar é fazer, e o que Trump faz muito bem é causar reações na audiência, sem qualquer preocupação com os fatos. Uma das maiores barbaridades por ele ditas na campanha, a da construção de um muro separando EUA e México, foi tão estapafúrdia que funcionou: um grande industrial mexicano ofereceu-se para fornecer-lhe o cimento, pensando nos bons rendimentos dos negócios. Trump aposta: na política, no mundo das competições empresariais ou no pôquer valem a agressividade e o improviso rápido. Sua última bravata foi: “Além de ter ganhado com folga no Colégio Eleitoral, ganhei no voto popular se você deduzir milhões de pessoas que votaram ilegalmente”, implicando novamente que houve fraude nas eleições. E não é essa a sensação geral, a de que o sistema político está totalmente fraudado?

Trump é o maior dos blefadores, mas não o único. Também Doria, Bolsonaro, Crivella, Russomano e Lula (entre muitos outros…) blefam magistralmente, apesar de seus defensores não gostarem de admitir. E blefam sem vergonha de blefar. Conforme a lógica dos marqueteiros, pouco importa se o que dizem será desmentido ou não, se sua imagem é coerente com sua história de vida ou não, importa que há quem compre. A diferença entre suas personas é de grau, não de essência. O que conta é a capacidade de levantar as massas, provocar os ânimos e angariar o maior número de seguidores, pseudo-crentes e acríticos. O discurso visa acordar o ódio (ou o amor, ou o medo, ou a ganância, ou a compaixão etc.) dormente nas pessoas e, para isso, quaisquer meios valem. Além da verdade e da mentira, desprezam completamente todas as críticas. Richard Stengel, subsecretário de Estado para a diplomacia pública dos EUA, acertou na mosca com sua própria versão do famoso print the legend: “Gostamos de pensar que a verdade tem de lutar pelo seu lugar no mercado [minha ênfase] das ideias. Pois bem, hoje em dia ela pode estar perdendo nesse mercado. Simplesmente ter mensagens baseadas em fatos não é suficiente para ganhar a guerra da informação”.

A nossa versão disso é o atrapalhado não temos provas, mas temos convicções, o que evidencia não se tratar de mera retórica nos moldes tradicionais. Se os políticos tradicionais sempre podiam encontrar razões para justificar suas mentiras e o voltar atrás nas palavras empenhadas (veja-se o caso de José Serra), os de hoje sequer se preocupam com justificativas, pois não querem mentir para manipular os fatos, mas as pessoas.

Os de antigamente também, não? Sim, mas eles usavam a credibilidade para persuadir, ao passo que os atuais persuadem pela sua total falta de credibilidade. Trump foi tão desmentido que ganhou a eleição. Dane-se o acordo com os fatos, os fatos é que têm que concordar comigo!

Entre nós, o mesmo se dá: quando um pedido de impeachment de Golpista foi protocolado na Câmara dos Deputados, Janaína Paschoal, coautora do pedido contra Dilma Rousseff, alega falta de base jurídica. No desgastado e improfícuo debate entre os doutos, parece ter mais razão quem não vê razão alguma em lugar algum: “Não vejo base [para o impeachment de Golpista]”, disse o professor Floriano Peixoto de Azevedo Marques, respeitado jurista e titular da Faculdade de Direito da USP, “se bem que, no caso da Dilma, não tinha também e foi declarado o impeachment”.

 

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Patana ou Banato, versão pós-verdadeira da ilusão do Pato-coelho.

We live in a bubble anyway, why not to make the most out of it?

Nesse contexto, não admira ser inútil replicar exaustivamente as conversas que denunciam a armação do Impeachment para parar as operações da Polícia Federal. Golpista até ganhou o prêmio “Brasileiro do Ano”, já dado, aliás, a Lula há alguns anos. É preocupante, porém, que esse desprezo pela verdade encontre tanto respaldo social. Em toda parte, esse tipo de raciocínio fingido é assustadoramente dominante. Onde viceja o antimétodo, fenece a atitude genuinamente científica: em vez de raciocinar para estabelecer alguma conclusão, primeiro adotamos uma conclusão e só então construímos um raciocínio com o objetivo de justificar essa adoção. Esse é o mecanismo dos algoritmos na Internet: apenas replicam infinitamente nas nossas telas conteúdos parecidos com os que já partilhamos e aos quais, de uma ou outra maneira, demos nossa aprovação. Isso fortalece a falácia da verdade ser uma narrativa como qualquer outra, a qual pode ser preferida ou preterida conforme preferências pessoais. Perguntar se a vontade de crer é efeito dos algoritmos, ou se os algoritmos correspondem a uma niilista e já antiga vontade de crer, é como perguntar quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. É o outro lado da pós-moeda: a melhor narrativa é a mais aceita, aquela que mais “emociona” as pessoas é a melhor. – You can’t handle the truth!But frankly, my dear, I don’t give a damn.

Com a Internet e a espetacularização desmedida da vida, é cada vez maior a sensação de vivermos todos num Show de Truman, ou numa Matrix. Cresce o apego acrítico das pessoas às suas próprias convicções. Não se trata de informar, dizia Umberto Eco, mas de produzir consenso por meio da desinformação. Onde está o real? Como verificar uma informação? Como descobrir o que é verdade ou mentira? Impossível. Por isso mesmo abundam também as constatações: os desastres são mostrados, os escândalos divulgados, as delações premiadas e as informações são exatas. Mas como entender tudo isso? Na dúvida, compartilhamos. Compartilhamos. Fragmentamos. Diluímos. Ou liquidificamos, como prefere Zygmunt Bauman, alçado midiaticamente a posto de arauto de nossas autodecepções.

O resultado são dicotomias estanques: bem e mal; real e virtual; nós e eles. No fim das contas, chegamos apenas à impossibilidade de pensar de maneira menos ingênua, e, se tiver razão Eco, imbecilizamo-nos todos. O nascemorrenasce do falso é implacável: cremos mais nas propagandas de celular. Quando questionamos, é sempre de imediato e com fôlego curto. Some-se a isso o infinito círculo de vulgarização midiática das incertezas da ciência que, como Trump, já entrou até n’Os Simpsons: afinal, comer bananas faz bem ou mal? Não era o ovo frito o vilão da história?

E, de fato, se ainda pensarmos existir alguma verdade universal, pura e eterna, é impossível ir além de constatações simplistas. Uma verdade assim estaria mesmo fora de alcance humano, só compreensível a divindades, pois nosso conhecimento é feito de opiniões, hipóteses, tentativas e erros. Nossas representações são sempre parciais e ninguém é dono da verdade. Por isso mesmo é preciso analisá-las: alguém pode em algum momento conhecer alguma verdade. Se fosse absolutamente impossível distinguir uma declaração verdadeira de uma falsa, até a leitura deste texto seria impossível. Se estamos inevitavelmente enredados na linguagem, nem por isso tudo que experimentamos pode ser reduzido às nossas idiossincráticas escolhas de vocabulário. O problema está em como reconciliar duas esferas, a da experiência de fenômenos irredutíveis à nossa imaginação e a da representação dessa experiência. Reduzir a primeira à segunda é o erro que sustenta a política da pós-verdade.

A bolha do ursinho Puff, que na verdade é ursinha

A ignorância quanto aos métodos empíricos da pesquisa científica é um dos mais amargos fracassos do Iluminismo: a ciência não produz crenças estáveis, mas, na verdade, é uma atividade que continuamente busca ir além de si mesma, sempre em busca de novas e melhores conclusões, mirando o ideal da verdade divina, num movimento que torna todas as nossas crenças e conclusões atuais em opiniões meramente provisórias. O cientista sabe que essa verdade ideal é inatingível, mas não abandona a meta. E, de certa maneira, a vontade de crer impele a investigação científica e também as pessoas a escolherem um candidato como Trump, ou como os pastores da ganância e da religião comercializada de hoje em dia: eu posso até ter dúvidas, mas confio nas certezas dele. Abandonamos, então, a diferença entre o genuíno conhecimento científico e o raciocínio fingido? Se assim fizermos, teremos cedido completamente à chantagem pseudo-nietzschiana de que a verdade é só uma moeda gasta e, por isso, sem qualquer valor, bem ao gosto dos pós-modernismos de direita (embora alguns se pretendam de esquerda; ou vice-versa).

Ora, uma coisa é dizer que estamos imobilizados numa sensação de falta de verdade e sem noção de realidade, outra muito diferente é defender que a própria realidade é efeito narrativo e não há distinção possível entre o real e seus simulacros. A verdade se tornou para nós algo muito mais complexo do que uma pontual identificação entre ideias e fatos, mas isso não nos escusa para recusá-la totalmente. Perdoem-me meus amigos lógicos se faço aqui uma grosseira simplificação de Alfred Tarski, mas se não somos capazes de enunciar uma verdade de fato e as condições dessa enunciação numa única linguagem, podemos sempre recorrer a uma metalinguagem, isto é, podemos sempre falar sobre como falamos, e esse exercício nos leva à autorreflexão, a tomar distância de nós mesmos, o que nunca foi fácil nem simples. Mas é a única maneira que temos de furar a bolha.

Sempre as mesmas perguntinhas incômodas…

No Zeitgeist contemporâneo, volta e meia nos deparamos com o tremendo papo-furado de que tudo são convenções socioculturais, a verdade não existe e a existência é uma grande ilusão, da qual só o zen-xintô-yoga-neo-tao-budismo nos libertará.

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Pós-verdade ou prol interesses?

Como disse, porém, um velho poeta (esse sim, verdadeiro fascista): bello, ma non funziona. Quando nascemos, o mundo já é. Tomar consciência de nós mesmos é um processo: em algum momento de nossas vidas, nós nos damos conta de estar em meio a coisas que já existiam e que têm inúmeras características, mais do que conseguimos contar. Nossa própria vida mental é resultado de raciocínios que fazemos para explicar a relação entre os mundos interno e externo: nós caracterizamos as coisas de maneira ideal além de considerá-las objetivamente, como independentes de nós mesmos. Nosso próprio self é o resultado de um raciocínio, o que chamamos de autoconsciência é a conclusão de um processo ilativo.

Depois, passamos o resto da vida encontrando premissas para reforçar a conclusão. Mas quase nunca pensamos nisso, porque tal tipo de autorreflexão só é suscitada quando alguma ocasião nos apresenta algo que não se adequa aos nossos hábitos mentais. Sem isso, podemos passar a vida toda sem nunca reconhecer a possibilidade do questionamento, e a diferença entre o que é real ou ficção então ou é artificial ou é absoluta. Esse tipo de questionamento só pode surgir do desconforto, com uma dúvida real, e não é algo que podemos fazer de conta duvidar. Quer dizer, podemos, mas aí, quem precisaria de gênios enganadores? Acontece que a possibilidade de estar sendo enganadas sequer passa pela cabeça das pessoas: ora, se é um jornal, por que mentiriam para mim? Jornal não é pra informar? Informação não é verdade?

Essa atitude não é absurda, mas insuficiente. Absurdo é pensar que não somos manipuláveis. Esse pensamento é avesso à autocrítica, princípio básico da genuína atitude científica: reconhecer os erros, revisar as conclusões e pô-las à prova pública, para qualquer pessoa poder averiguar. O pressuposto da publicidade do conhecimento é a vida da ciência, manter segredos é próprio de interesses de outras ordens. Se o conhecimento científico não é infalível e suas conclusões nunca são suficientes, é porque a verdade científica só é conhecida quando corrigimos nossos próprios erros e conseguimos medir o tamanho de nossa ignorância. E tal processo só pode ser válido se for público, isto é, coletivo. Querer aprender com os próprios erros é o contrário do raciocínio fingido comum hoje em dia, mas é difícil e muitas vezes doloroso.

Para aprender, temos de ir além das meras constatações de fato sem esquecê-los. Uma vantagem nisso, talvez pequena, mas ainda assim importante, é adquirir a compreensão de como podemos nos enganar quando relacionamos nossas narrativas pessoais aos acontecimentos externos. Em outras palavras, é preciso questionar a maneira como interpretamos as representações que fazemos dos fatos. Muito mais fácil do que analisar as causas é enumerar constatações. Interpretar a sequência e o entrelaçamento dos acontecimentos, dar uma explicação para a continuidade entre eles depois de pensar, estudar, debater, ouvir outras vozes e argumentos, dar espaço a diferentes possibilidades, tudo isso é muito trabalhoso. A quem se fecha em posições absolutas, qualquer perguntinha simples – Quem? Como? Por quê? – é um grande incômodo.

As emoções são como as flores selvagens e não estou brincando

Hoje em dia, acostumamo-nos com a ideia da mentira, principalmente em política. Políticos mentem. Ninguém mais tem ilusões, todos são iguais. Esse nivelamento rasteiro permite escolhas rasteiras: qualquer um que apareça diferente do comum é melhor que o já conhecido. Para manter a ordem social vigente, os poderes que estão por trás das eleições, os grandes financiadores de campanhas, dependem de não questionarmos a sua interpretação da verdade, assumindo-a como a nossa.

Ora, a verdade sempre foi entendida como o acordo entre as palavras e as coisas, entre as representações e os fatos, mas esse acordo pode ser entendido de diversas maneiras, interpretado de vários ângulos, o que não significa que tudo é subjetivo, relativo ou coisa que o valha. Por diversos caminhos se chega à verdade, como dizia Agostinho. Por que, então, devemos nos contentar com apenas um único caminho? Por que não questionar as interpretações oferecidas dessa concordância em vez de desqualificar a própria verdade? Pensando assim, Richard Rorty, recentemente lembrado por ter “previsto” a eleição de Trump, tinha mesmo razão: a falência de uma boa parte da esquerda deve-se à incapacidade de dialogar com as pessoas cujos interesses pretendeu defender.

Aceitando a perfectibilidade do “sistema”, quer dizer, abandonando o discurso mais radical da transformação em nome de ideias menos polêmicas e por isso mesmo mais vagas, como “governabilidade”, “fazer o que for possível” etc., o pensamento à esquerda cedeu ao charme da pós-verdade. O próprio Rorty foi um dos críticos da distinção entre uso e interpretação e da tentativa de descrever a realidade tal como ela é. Contudo, ele também defendia que a provisoriedade e a falibilidade do nosso saber não bastam para desistirmos de estabelecer critérios para interpretar como pensamos ou descrevemos o mundo. Ou arriscamos interpretações e as submetemos à prova pública, ou então cedemos a um niilismo fácil e conformista, dizendo que como não pedimos para nascer, também não devemos fazer esforço para morrer. Pífio. Surpresa alguma o próprio Rorty ter nostalgicamente escrito sobre Trotsky e as orquídeas selvagens…

Quanto mais reagirmos politicamente com emoções as mais primitivas, mais seremos manipulados, mais estaremos à mercê de interesses que desconhecemos. Vivemos num tempo de graves e globais ameaças à democracia. É fundamental resistir à chantagem irracionalista, muito mais útil aos tiranos e sicofantas do que aos pobres, desterrados e espoliados, a imensa maioria de trabalhadores do mundo. É preciso retomar os canais de comunicação com o público – não falo apenas dos media, aliás, falo além deles: é imprescindível resistir aos media tais como hoje são dirigidos, mas a resistência deve almejar a invenção de meios de compartilhar o conhecimento que não se reduzam a mercadorias e não se pautem exclusivamente pelas reações emotivas da massa.

Chomsky há anos vem defendendo esse ponto: “Você não fala a verdade para ninguém, isso é muito arrogante. O que você faz é se juntar às pessoas e tentar descobrir a verdade com elas, então você as escuta e diz a elas o que pensa e tenta encorajá-las a pensar por si mesmas”. Talvez seja isso mesmo o que nos falta: mais humildade para pensar junto e esperança de ir adiante.