Cinema como indústria cultural

A consagrada afirmação de Immanuel Kant é considerada a melhor expressão do espírito do Iluminismo: “O esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele mesmo é o culpado. Sapere aude! [Ousa saber] Faz uso de teu próprio entendimento! Tal é o lema do esclarecimento.” Essa afirmação, de 1784, tornou-se famosa por concentrar também todo um conjunto de anseios emancipatórios. Para Kant, a Aufklärung – o iluminismo, o esclarecimento, as luzes, a ilustração – nos liberta de autoridades externas a nós mesmos. Os que detém a autoridade possuem o mistério. O sacerdote tem um acesso privilegiado ao mistério da religião, é por ele que o divino vêm a nós. O iluminismo afirma que a razão humana é capaz de responder a todas as questões às quais as autoridades tradicionais tinham respostas. Quando uma alegação, uma pergunta ou um questionamento racional é lançado, abre-se um caminho que alguém pode seguir por si mesmo. A luz do esclarecimento leva ao conhecimento construído autonomamente, o que não acontece na religião, no patriotismo, no militarismo etc., que sempre pressupõem uma mediação externa.  Para Kant, só a construção autônoma do conhecimento nos liberta do autoritarismo, o que pode ser entendido como uma consequência da Revolução Científica para as nossas vidas: entendemos a luz do mundo agora a partir de nossa própria razão.

 

No século XX, dois outros filósofos, Max Horkheimer e Theodor Adorno, publicaram em 1944 a Dialética do Esclarecimento, livro no qual contestam essa interpretação otimista do iluminismo expressa nas afirmações de Kant. Nesse livro, eles exploram as consequências do avanço da tecno-ciência sobre a vida social para elaborar uma severa crítica ao que consideram ser o fracasso da era do iluminismo. Para Horkheimer e Adorno, há uma continuidade entre mito e esclarecimento que perdura na modernidade, em termos gerais. A modernidade realiza o que o mito sempre quis e nunca conseguiu realizar plenamente. É verdade que vemos o mundo à luz de nossa razão? Se esse é o efeito genuíno do esclarecimento, como, então, entender a violência crescente do século XX? Não haveria na própria modernidade algo a sustentar um propósito violento cada vez mais onipresente? O que Horkheimer e Adorno apontam é que o iluminismo não pode ser considerado um movimento histórico homogêneo e livre de contradições, como se o progresso fosse um resultado inevitável, como numa linha contínua e direta, da história. A racionalização da vida social produziu o sonho de controle da natureza para conforto da humanidade, mas o que vimos acontecer foi que tornou-se um pesadelo. Para nós, habitantes de um mundo pós-iluminista, é fundamental entender o que significa esse tal progresso, uma vez que as promessas de liberdade e emancipação não se concretizaram como pensavam os filósofos do século XVIII. Por que alguém ainda defenderia os ideais iluministas se fomos por eles levados a um caminho de barbárie e violência? É este o preço que pagamos pelo progresso – mas é este o preço que temos de pagar por todo e qualquer progresso?

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“O sono da razão produz monstros” (1799), gravura de Francisco Goya y Lucientes, da série dos Caprichos. “Sueño”, em español, pode significar “sono” ou “sonho”, o que faz com que a inscrição também possa ser lida como “O sonho da razão produz monstros”. Num manuscrito autógrafo guardado do Museo del Prado, em Madri, Goya escreveu sobre essa sua gravura: “A fantasia abandonada da razão produz monstros impossíveis: unida a ela está a mãe das artes e a origem das maravilhas”. A razão, ao adormecer, dá espaço ao surgimento de monstros e fantasias irracionais, mas as perguntas que permanecem abertas são: esses monstros surgem da própria razão? A razão consegue manter-se em vigília eterna?

 

Segundo o diagnóstico de Horkheimer e Adorno, a irracionalidade habita o íntimo da racionalidade. A razão científica moderna tentou expulsar do mundo tudo que não estivesse conforme aos seus parâmetros, promovendo uma desmistificação da existência, um processo parecido ao descrito anteriormente por Max Weber como desencantamento do mundo. Há uma perda de animismo na modernidade, o que nos deixa com o conhecimento de que nenhuma alma ou espírito habitam os objetos. Mas, se não há espírito em nada,  onde isso nos deixa?

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Tela a óleo de Tiziano (1473/1490-1576), Amor sacro e amor profano, 1516. A dicotomia entre o sagrado e o profano é tratada por Émile Durkheim, em seu As formas elementares da vida religiosa (1912): o sagrado definiria o âmbito da vida religiosa, essencialmente coletiva, na qual o sentido de unidade estaria representado simbolicamente (em totens ou ídolos, por exemplo) como separado da vida comum. Já  o profano definiria o âmbito de interesses puramente individuais e mundanos. A dicotomia foi tratada também por Mircea Eliade, em seu livro O Sagrado e o Profano. Para Eliade, o sagrado define o todo da realidade e manifesta-se por meio de hierofanias, isto é, manifestações do sagrado que dão sentido qualitativo à experiência humana – se os entes e as coisas são reais, é porque participam desse todo. O profano, ao contrário, desconhece distinções qualitativas, todas as coisas estão no mesmo nível e igualmente abertas à intervenção humana.

Depois do esclarecimento, a natureza foi submetida a controle humano. O homem europeu colonizou não apenas outros povos, como também o próprio planeta, tudo submetendo a uma implacável racionalidade de natureza instrumental, quer dizer, uma racionalidade que entende tudo segundo a relação utilitária entre meios e fins. O esclarecimento, assim, seria promovido por certo método que não é apenas científico, mas sobretudo tecno-político, no sentido de visar não apenas a descoberta, mas sobretudo a dominação. Para que o esclarecimento se cumpra, é preciso subjugar a natureza, fazendo-a dobrar-se às finalidades humanas pelos expedientes mais úteis e eficazes. Segundo essa tese, o método científico é o instrumento que revela os mais recônditos lugares ainda não dominados e examinados pela razão – cabe, pois, ir até lá, estudá-los e dominá-los. A última fronteira do desconhecido a ser desbravada é a natureza humana. Esse é o objeto último a ser domado, o derradeiro território desconhecido a ser desbravado e dominado, o último resquício de irracionalidade a ser erradicado da face da terra. Só assim pode consumar-se, então, o “feliz matrimônio entre espírito e matéria”, um matrimônio que nos tornará prisioneiros de nós mesmos num círculo vicioso de esclarecimento aprisionador.

É aqui que a indústria cultural exerce seu papel fundamental. Vamos partir de algumas declarações dos autores para entender melhor esse conceito.  :

 O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acaba de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção cotidiana, torna-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que as suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme. Desde a súbita introdução do filme sonoro, a reprodução mecânica põe-se ao inteiro serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro. [Adorno & Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, pp. 118-119].

Aqui, o exemplo dado é o do cinema, mas Adorno e Horkheimer tentam fazer uma análise abrangente de cinema, rádio e televisão não apenas como “meios de comunicação de massa”, expressão que consideram ingênua e enganadora demais, mas como verdadeiros setores de uma imensa indústria cultural. O caso do rádio é esclarecedor: ao eliminar toda possibilidade de réplica, a radio-difusão coloca o ouvinte em situação absolutamente passiva diante de seus programas. A isso, junte-se o fato de as emissoras de rádio não cobrarem pelo sinal (como até hoje, diferentemente das TV’s a cabo), o que dá ao rádio uma aparência de autoridade isenta: ao integrar todos os outros produtos na esfera das mercadorias, os programas de rádio não parecem ser mercadorias, mas parecem ser a expressão de uma voz universal, supra-partidária, onipresente e oni-invasora.

Vintage RadioColocar a palavra humana como algo de absoluto, como um falso imperativo, é a tendência imanente do rádio. A recomendação transforma-se em um comando. A apologia das mercadorias, sempre as mesmas sob diversas marcas, o elogio do laxante, cientificamente fundamentado, na voz adocicada do locutor entre as aberturas da Traviata e de Rienzi, tornaram-se, já por sua cretinice, insuportáveis.

Muitas das ideias sobre o rádio publicadas em Dialética do Esclarecimento já tinham sido desenvolvidas por Adorno, no Projeto de Pesquisa sobre o Rádio, financiado pela Fundação Rockfeller, do qual ele participou de 1937 a 1941. 

   Esse é o tom e o problema central de toda a análise: como explicar que o avanço da técnica e da ciência tenham produzido uma indústria cultural capaz de produzir cada vez mais mistificação, cada vez menos esclarecimento. A indústria cultural constitui-se, no século XX, como uma indústria especializada em produzir obras de arte, formada principalmente pelo conjunto de rádio, cinema e televisão (esta última é entendida como uma espécie de síntese dos anteriores). Dentro de parâmetros comerciais, rádio, televisão e cinema deixam de ser meros veículos de transmissão e transformam-se eles mesmos em indústrias, cuja finalidade é produzir bens de consumo de natureza cultural, como fotografias, filmes cinematográficos, reproduções de pinturas, esculturas etc., e não genuínas obras de arte, pois essas seriam idealmente outra coisa. Vejamos.

Para Adorno e Horkheimer, as técnicas de industrialização aplicadas à arte transformaram-na em mero entretenimento, sem verdadeiro valor artístico. Tal valor, para eles, estaria na capacidade da obra de arte autêntica em apresentar alguma alteridade, quer dizer, em reenviar à diferença. Esse é seu teor de negatividade, no jargão adorniano. A autêntica obra de arte perturba, provoca, remete ao desconhecido e ao diferente, e é capaz de movimentar o pensamento daquele que entra em contato com ela. Ora, o ouvinte do rádio, bem os espectadores de cinema e televisão, não são mais que meros consumidores de fórmulas prontas, cuja finalidade é, em última instância, direcionar o desejo das pessoas ao consumo, dando-lhes respostas prontas e simplistas para suas inquietações. A maior delas é: tudo se resolve com o consumo. Basta consumir para ter uma vida tranquila e facilitada. Tomando como exemplo o caso do cinema, várias capacidades cinematográficas, segundo Adorno, fariam exatamente isso: em vez de suscitar o pensamento, reenviariam a tudo o que o espectador já sabe, a nada de diferente, a nada de novo ou ao menos inusitado. As fórmulas da indústria cultural funcionam assim: evitando todo contato do público com o que lhes pareça essencialmente estranho, isto é, com a genuína diferença, tentam evitar o conflito, a insatisfação com o imediato e o questionamento racional.

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Uma canção de Cazuza traz os seguintes versos: “Ver TV a cores/ na taba de um índio/ programada pra só dizer sim, sim, sim“. A imagem é de uma vinheta da Rede Tupi de Televisão, primeira emissora de televisão do Brasil, fundada em 1950 e cujas atividades foram encerradas em 1980.

A arte, dominada pela intenção propagandística da indústria cultural em promover certo modo de vida consumista, contribuiria, por conseguinte, para a produção e a propagação da reificação e da fetichização – da mercadoria, das pessoas em mercadoria, da própria vida em objeto de troca, ou seja – em mercadoria. O filme cinematográfico, sobre o qual posteriormente Adorno dedicará especial atenção, faz isso muito bem, uma vez que consegue criar no espectador a sensação e a ideia de proximidade, de continuidade entre vida e (obra de) arte, embotando o pensamento crítico pela impossibilidade de estranhamento e distanciamento diante da obra, como bem evidencia a citação inicial. E mesmo algumas mudanças de estrutura narrativa seriam incapazes, somente elas, de mudar o fato de que, no ilusionismo cinematográfico, há sempre o reenvio a uma identidade que se deseja construir, ou melhor, trata-se de causar a impressão da proximidade, fazendo a vida parecer similar ao filme e vice-versa, a impressão de que essa identidade entre ser e ser representado, entre cinema e realidade, é natural. Não deve haver, por parte do espectador, esforço de interpretação, não se trata de provocar questionamentos, muito menos reações: “o produto prescreve toda reação”, afirmam os autores, indicando a diversão fácil, o mero entretenimento, a consequente capacidade reificadora e repressora de um desejo socializado e não efetivamente realizado dos produtos da indústria cultural (lembre-se a discussão sobre os apelos sexuais do cinema).

                  Ora, o que está em questão é a constituição propriamente semiótica inerente a uma obra de arte cinematográfica, isto é, sua constituição significativa. O problema não está tanto na representatividade dos signos que o cinema movimenta, mas sim na sua utilização sintática, sua ordenação formal. Nesse sentido, uma pergunta de natureza propriamente pragmática se impõe: qual a mensagem, isto é, para que esse signos são utilizados? Adorno (e talvez não Horkheimer) responderia: para reafirmar sempre o mesmo e não para apresentar qualquer diferença, qualquer teor de alteridade. Não há postura de intervenção (direta ou indireta) da arte no mundo, pois não há distanciamento, sequer sua possibilidade é dada. Ora, então não há, também transformação possível – jamais está colocada a possibilidade de recriar o mundo de outra maneira, mas de continuar sempre o mesmo. Obviamente, são os interesses econômicos que dão os ditames dessa propagação do mesmo pela indústria cultural. Sabe-se que isso acontece em todas as esferas: quanto mais previsível e uniforme o resultado, maior a chance de lucro por parte dos investidores.

                  Adorno e Horkheimer enfatizam os elementos retrógrados e recessivos do cinema, mas fica difícil saber em que apostar. Talvez, para Adorno, haja uma alternativa emancipatória apenas numa experiência estética diferente. A sua aposta está na música, não na música para consumo imediato, a música composta com ritmos e melodias simplistas que intensificam apenas as emoções mais passivas na massa, mas a música na qual são privilegiadas a experiência de introspecção e de interação dos ouvintes (para Adorno, podemos dizer que o dodecafonismo representaria uma alternativa dessa natureza). Seria isso possível no cinema?

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Walter Benjamin (1892-1940). em Paris, 1939. A foto é de Gisela Freund.

É Walter Benjamin quem atenta para características formais do cinema que representariam possibilidades emancipatórias. O uso do cinema para transmitir ideologias políticas não precisa levar somente a um embotamento do pensamento, mas pode também produzir algo de positivo. Em seu notório e sempre atual ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, ele destaca um traço distintivo da então nova arte cinematográfica: a tatilidade da imagem cinematográfica, algo advindo, para ele, de uma herança dadaísta. Tatilidade, isto é, a capacidade de ser uma imagem tátil, perceptível pelo tato. Com isso, Benjamin quer dizer que a imagem em movimento do cinema nos atinge “intermitentemente”, produzindo um efeito de choque traumatizan
te que nos movimenta de alguma forma. Benjamin compara o cinema à pintura: “Pensar em toda a diferença que separa a tela na qual se desenrola o filme e a tela na qual se fixa a pintura! A pintura convida à contemplação; em sua presença, as pessoas se entregam à associação de ideias. Nada disso ocorre no cinema; mal o olho capta uma imagem, esta já cede lugar a outra, e o olho jamais consegue se fixar.” Isso é o que faz com que “o filme somente possa ser apreendido mediante um esforço maior de atenção” [p. 30-31].

 O cinema, assim, não somente teria a capacidade de paralisar o pensamento, mas também de aguçar positivamente a percepção por meio do choque (note-se que Walter Benjamin usa o vocabulário psicanalítico, como não poderia deixar de ser em sua época, mas o problema continua válido. Basta lembrar as reflexões de G. Deleuze sobre o tempo cinematográfico – a duração do tempo é diferente no cinema, embora possamos senti-la como a mesma de nossa experiência direta). Assim, mesmo porque também se distrai, o espectador de cinema, com sua atenção flutuante, móvel, pode estar mais perto da compreensão dos perigos existenciais de nosso tempo. O cinema, pela sua gramática, pode modificar a percepção e melhor afigurar a realidade do século XX. A materialidade de sua linguagem seria a melhor para invadir a realidade, diminuindo a distância entre obra e espectador, e, assim, mobilizar as massas:

“Por essa espécie de divertimento, pelo qual ela tem o objetivo de nos instigar, a arte nos confirma tacitamente que o nosso modo de percepção está hoje apto a responder a novas tarefas. E como, não obstante o indivíduo alimenta a tentação de recusar essas tarefas, a arte se entrega àquelas que são mais difíceis e importantes, desde que possa mobilizar as massas” [p. 32].

 

Não cabe, aqui, concluir tentando fazer o balanço das perspectivas de Adorno e Horkheimer e Benjamin, buscando saber quem estava certo sobre qual ponto. Se pensarmos em Eisenstein, ou Tarkovski, talvez Benjamin indique com razão o caminho que o cinema também tomou durante o século XX, e mesmo assim resta inegável o caráter de pacificação do público pela produção de massa da indústria cultural. Tema para outra ocasião.

Viver, morrer, ser lembrado

Cordiais saudações!

O texto a seguir foi publicado com o título original “Viver, morrer, ser lembrado: A falecida, a peça de Nelson Rodrigues e o filme de Leon Hirszman“, no Correio da Cidadania, em 21 de Dezembro de 2010. Trata-se de um texto por ocasião do final de ano, o leitor notará o tom.

Pouco tenho a acrescentar ao texto original. Ao final, eu apresentava as seguintes referências:

“O DVD de A falecida ainda traz outros dois filmes em curta-metragem de Leon Hirszman: “Nelson Cavaquinho” e “Partido Alto”, além de vários depoimentos nos “extras” (mais informações sobre o projeto em http://www.leonhirszman.com.br/).

Os trechos de Jean-Claude Bernadet e Carlos Augusto Calil foram impressos no bem cuidado encarte que acompanha o DVD. O livro Brasil em Tempo de Cinema ganhou nova edição em 2007, pela Companhia das Letras. O texto de Ângela Leite Lopes foi incluído na fortuna crítica do Teatro Completo de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993), volume organizado por Sábato Magaldi, que há tempos merece outra edição. Já o texto “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov“, de Walter Benjamin, pode ser encontrado no primeiro volume das obras escolhidas do autor, intitulado Magia e técnica, arte e política (São Paulo: Brasiliense, 1994, 7ª ed.).”

Uma versão do escudo de Aquiles

Ao leitor atento não escapará mais uma menção ao texto de Walter Benjamin, presença frequente neste blog. Não sei se é minha obsessão pelo texto, mas o poder de suas ideias me fascina. Além de ser belíssimo, esse escrito de Walter Benjamin sintetiza ideias importantíssimas sobre nossa época, com alcance que não consigo avaliar. Como bem nos recorda Jeanne-Marie Gagnebin, queridíssima professora e colega de Departamento (fato que para mim significa dupla honra), o tema da bela morte remonta a Aquiles, que preferia morrer gloriosamente a viver sem ser notado, uma vez que a vida sem brilho significa a morte absoluta, o apagamento na lembrança dos vivos. Narrar para não esquecer significa afirmar-se como sujeito, assim como uma teima em não desaparecer na história , ao mesmo tempo em que significa também matar para sobreviver – selecionar o que contar significa deixar esquecer algumas coisas para que outras possam sobreviver. Assim é que nossa identidade se constrói e que nos reconhecemos como sujeitos.

Assim é que a luta pelo reconhecimento e pela memória podem tornar-se redentoras e revolucionárias para aqueles que, cotidianamente, levam adiante o mundo. Certa vez, não me lembro bem de quem ou quando, ouvi ou li que para o budismo as pessoas que carregam o mundo nas costas são aquelas pessoas absolutamente anônimas, sem qualquer notoriedade, e às quais em geral não se presta atenção alguma: jardineiros, professores, pequenos comerciantes, trabalhadores comuns.

Ji Gong, monge budista das pessoas comuns: em cada um, ele é outro

Se o budismo defende isso mesmo ou não, não sei dizer. Eu sempre entendi isso de duas maneiras, não exclusivas. Se os gênios, as antenas da raça, os grandes artistas e realizadores têm algo de demente e incomum, não poderia deixar de ser diferente – as pessoas comuns é que têm de levar o mundo adiante, já que se todos fossem grandes criadores a vida não continuaria, toda ruptura e façanha que seria. A sociedade é uma máquina de reprodução, dizem certos marxistas, uma contínua reinstauração de hábitos e práticas estabelecidas. Ao mesmo tempo, se ninguém pensar o impensado, se ninguém agir para inovar, se não houver ruptura e descontinuidade, nada muda e a vida seria a mais tediosa permanência e repetição do sempre mesmo.

Nem uma coisa, nem outra. Ambas. As diferenças coexistem, simultaneamente são; se a (re)produção das identidades exige a continuidade temporal, não é porque o presente é fechado em homogeneidade, mas porque é preciso marcar, ainda que provisoriamente, certas fronteiras que permitam à vida continuar fluindo – afinal, ela fluirá de toda maneira e é melhor que o faça sem nos atropelar muito. Precisamos de alguma estabilidade para, inclusive, poder planejar algumas mudanças. O problema está em quem tem o poder de definir quais são os marcos identitários, para quem devem funcionar, quem fica dentro e quem fica fora dos padrões definidores, e o que isso significa. Em termos mais diretos: o que significa ser brasileiro, ou homem, ou mulher, ou mesmo humano? Quem estabelece os critérios – e com quais finalidades o faz – para definir quem é e quem não é? Quem pode ser? Quem jamais será?

Essa reflexão foi desenvolvida por muitos pensadores do século XX. É importante para Jean-François Lyotard e Jacques Derrida, por exemplo. Já faz parte, ainda que nos interstícios do texto, da obra de Walter Benjamin, em suas teses sobre a história, por exemplo. Contra a história centrada em mitos de personalidades, aquela sucessão linear de grandes feitos idealizados, contada do ponto de vista dos “gênios”, dos “conquistadores”, teleológica, dirigida a um gran finale ao qual seremos conduzidos por nossos líderes, vale a perspectiva das pessoas comuns e sua heroica sobrevivência de resistência à violência que lhes impõe a máquina. Afinal, qual a razão inquestionável e a priori que me obriga a marchar seguindo o líder? Será a mesma razão que impede outros de marcharem comigo?

Imagem de O Triunfo da Vontade, de 1935, de Leni Riefenstahl

A radicalidade do pensamento de Walter Benjamin pode ser vista, por exemplo, nas escolhas populares de seus próprios mitos identitários. Uma recente edição da revista de história da Biblioteca Nacional (http://www.revistadehistoria.com.br/revista/edicao/80) traz um dossiê sobre a Princesa Isabel. Uma das coisas que me chamaram a atenção foi a discussão sobre a memória deixada pela Princesa. Mesmo que tenha assinado a Lei Áurea de libertação dos escravos, a Princesa Isabel não é a preferida na lembrança da população para comemorar o 13 de maio, perdendo de longe para Zumbi dos Palmares, por exemplo. Mais que utopia e rememoração, o pensamento de Walter Benjamin vive da afirmação de outras formas de contar a história – contar a história a contrapelo, como ele mesmo afirma nas suas teses sobre a história. A história não como disciplina escolar, mas como uma narrativa de processos vividos na pele, na carne das pessoas comuns que, no fim das contas, levam a vida adiante, embora no mais das vezes não ganhem bustos ou nomes de ruas a perpetuar-lhes a memória. Talvez nem precisem disso, pois sua memória não pode ser petrificada, emplacada – ela vive continuamente na lembrança que temos de nós mesmos, como a nos re-significar a cada vez que pensamos em quem somos, re-atualizando identidades e diferenças.

Espero que o texto consiga mostrar porque considero a peça de Nelson Rodrigues e o filme de Leon Hirzsman casos memoráveis de nossa cultura. Boa leitura e até a próxima.

À Maria Hirszman

A peça A falecida, de Nelson Rodrigues, apresenta uma mulher, Zulmira, moradora da Zona Norte do Rio de Janeiro, fins da década de 40, cuja obsessão pela morte traduz-se no desejo de ter um enterro luxuoso, “bonito, lindo… de penacho…”. Fica clara, na peça, a intenção de Zulmira de ser enterrada com tanta pompa de modo a dar uma lição em sua prima e vizinha Glorinha: “Quando eu morrer,” diz ela ao marido Tuninho, “Glorinha há de estar, na janela, assistindo, de camarote, o meu enterro, gozando. Ela sabe que estamos na última lona e, portanto, que meu enterro deve ser de quinta classe. Olha! Eu quero sair daqui! Nada de capelinha! Se Glorinha soubesse! Se pudesse imaginar que eu, na surdina, estou tomando as minhas providências!”.

Algum leitor há de se perguntar: “Enterro lindo? Como assim?!?”. Na peça, a razão da obsessão de Zulmira revela-se no terceiro ato: Glorinha é testemunha de uma traição de Zulmira. Em geral, as poucas análises da peça (de que este escritor tem conhecimento) vêem nisso algo de psicanálise superficial, justificada pelas posições ideológicas do autor, notório conservador e “reacionário”. Não raro lemos que, em A falecida, Nelson Rodrigues faz troça da vida suburbana carioca, chegando mesmo a ridicularizar a personagem Zulmira.

Fernanda Montenegro como Zulmira em seu primeiro papel no cinema

Já o filme A falecida, dirigido por Leon Hirszman e roteirizado por Eduardo Coutinho (Brasil, 1965), apresentaria a história de Zulmira (na bela interpretação de Fernanda Montenegro) sob outra perspectiva, a da degradação e da alienação sociais da classe média. Em vez de um olhar ridicularizante, o filme traria um olhar compassivo para com as personagens alienadas e empobrecidas do subúrbio carioca, vítimas de uma realidade social injusta.

Agora, com o lançamento do filme em DVD, no quarto volume do projeto de restauração da obra de Leon Hirszman, tomamos conhecimento de uma declaração de Fernanda Montenegro: “Acho que há uma deformação, do ponto de vista dramático, quando se vê o Nelson. Ele (Leon Hirszman) quis fazer um filme, não anti-Nelson, ele nunca falou isso, mas um filme que mostrasse o lado denso do Nelson, sem folclore”.

Propomos aqui uma interpretação que tenta harmonizar a idéia da alienação com a de uma dramaturgia rodriguiana densa e sem folclore, seguindo a nota dissonante sugerida pela grande atriz.

A interpretação aludida – que também explicaria as desavenças entre o diretor e o dramaturgo, o qual não teria gostado do filme – é confirmada por dois grandes críticos do cinema brasileiro. Diz Jean-Claude Bernadet:

A falecida, baseado em peça de Nelson Rodrigues, é a história de uma alienação. (…) A falecidapoderia ser um esplêndido retrato da vida suburbana carioca e excelente evocação do marasmo em que vive grande parte da classe média do país, em conseqüência das contradições que já vimos e do processo acelerado de proletarização em que se encontra. (…) A falecida sugeriria perfeitamente essa degradação lenta da classe média, esse resvalo para um nível de vida baixo, essa diminuição de suas possibilidades, não fosse a segunda parte do filme, em que um retrospecto dá a explicação do comportamento de Zulmira: tudo isso porque fora adúltera e apanhada em flagrante por uma vizinha. O filme então resvala para uma psicanálise de folhetim, perdendo-se todas as implicações da primeira parte. Tem-se a impressão de encontrar na primeira parte Leon Hirszman, enquanto a segunda é de Nelson Rodrigues. Nessa primeira parte, reconhece-se de fato um aspecto da temática de Hirszman – uma vida que existe em função da morte –, mas as explicações de Hirszman nunca poderiam limitar-se a um adultério” (em Brasil em tempo de cinema, livro de 1967).

De fato, o próprio diretor declarou, certa vez, ter deliberadamente mudado o enfoque da narrativa, reduzindo uma característica ênfase psicopatológica rodriguiana na construção da personagem Zulmira para apenas um motivo dentre outros, de modo a ressaltar, por exemplo, a dimensão social da “farsa trágica” (denominação presente no programa de estréia da peça em 1953).

No mesmo diapasão, afirma Carlos Augusto Calil: “Nelson Rodrigues, na peça A Falecida, escarnece de uma mulher suburbana, com vocação bovarista, que não suporta o olhar implacável e moralista de sua medíocre comunidade. Leon Hirszman tem compaixão pela personagem lânguida e não a condena. Eis aí o princípio do desentendimento entre autor e diretor” (“Leon Zona Norte”, texto do encarte do DVD).

De fato, a alienação é tema tanto na peça quanto no filme. É sintomática a fala de Tuninho: “Às vezes, eu tenho inveja de ti. Tu não te interessas por futebol, não sabes quem é Ademir, não ficas de cabeça inchada, quer dizer, não tens esses aborrecimentos… Benza-te Deus!” (escrita por Nelson, mantida quase ipsis litteris no filme). O filme, ainda assim, traz elementos que trazem a alienação ao primeiro plano: o cenário de degradação espacial dos subúrbios do Rio de Janeiro, a fotografia em preto e branco a reforçar os dias nublados e chuvosos das filmagens, a frase “no tempo em que Pelé era Ademir” inserida logo após os letreiros, no começo do filme, a própria Zulmira como alegoria da dissolução etc. E, de fato, vários testemunhos confirmam que Nelson Rodrigues não teria gostado do resultado da montagem final (nos extras do DVD, as declarações de Joffre Rodrigues e Eduardo Coutinho). Mas, independente disso, há outros pontos de contato entre as duas obras que gostaríamos de ressaltar.

Primeiro, lembremos que a morte é tema por excelência – obsessivo! – de Nelson Rodrigues. E, como bem lembrado por Ângela Leite Lopes (“As mulheres de Nelson Rodrigues”), uma vida em que se conquista uma relação com a morte não significa, necessariamente, uma vida para a morte. O que isso quer dizer?

Richard Bosman, Morte de uma femme fatale, 1982

A vida de Zulmira nada tem de especial: seu marido, Tuninho (Ivan Cândido, no filme), desempregado, só pensa em futebol e em jogar sinuca, mal se importa com ela. Ela vem a encontrar num caso extra-conjugal, com João Guimarães Pimentel (no filme, Paulo Gracindo, em grande interpretação), uma forma de escapar de sua realidade maçante.

Zulmira e o Amante

Note-se: seu amante é a única personagem com nome e sobrenome, como a indicar sua confortável situação financeira (é a única personagem que tem visibilidade social: vítima de perseguição jornalística, orgulha-se, até, de seu nome aparecer nos jornais, e Tuninho, depois, se valerá desse fato para chantageá-lo). Eis, então, que Glorinha aparece para acordar-lhe do sonho: um amante rico, e que ainda por cima gosta dela, só podia ser mesmo um sonho… Para Zulmira, vencer as limitações e as repressões de sua condição miserável passa a ser vingar-se da prima. E como não tem meios de alterar sua realidade, passa a querer morrer, mas não qualquer morte: ela fixa-se em um enterro “como nunca houve aqui” (eis a “psicanálise de folhetim” rodriguiana), daqueles para não se esquecer durante muito tempo. Afinal, o que teria Zulmira a contar, se sua vida é frustrada, empobrecida e sem perspectivas? Esquecida em vida, por que deveria ser lembrada após morrer?

Na peça, um enterro luxuoso significa superioridade e distinção social, e não só para Zulmira, mas para todos os desprestigiados e marginalizados sociais. Em passagem excluída do filme, Timbira (no filme, representado por Nelson Xavier), funcionário da funerária, declara que “o embaixador” recusou um enterro caro à própria mulher: “Pra encurtar conversa: encomendou um de oitocentos cruzeiros e olha lá! Caixão mixa! (…) E assim mesmo porque eu cantei aquela besta que só você vendo!”. Já o bicheiro não pensou duas vezes e preferiu muita ostentação no enterro da filha: “Quando disse que podia arranjar, pra filha dele, um caixão assim, assim, com alças de bronze, forro de cetim, sabe que, lá, todo mundo ficou com água na boca? (…) Pedi 20 mil cruzeiros e ele topou, imediatamente. Se eu pedisse trinta, também dava, aposto! Descobri que bicheiro é um grande sujeito! (…) Cortina pra cinco portas, crucifixo de cristal, o diabo a quatro! Tudo 35 mil cruzeiros”. É justamente esse o enterro dos sonhos de Zulmira: muito brilho, muita ostentação, muito barulho para não passar despercebido, inclusive com hinos da igreja teofilista na hora de fechar o caixão.

Nesse contexto, o tema da alienação pode ser entendido em outra clave. Em belíssimo texto, Walter Benjamin já em 1936 alertava para a expulsão da morte de nossa vida contemporânea: “Antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém. (…) Hoje, os burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais” (O narrador, já citado no ensaio sobre Hugo Cabret neste blog). Para Benjamin, o inesquecível aflora no momento da morte, a própria vida ganha sentido no momento da morte. Ao presenciarmos a morte de um ser humano, partilhamos a experiência de uma vulnerabilidade à qual estamos todos sujeitos, fato que faz até mesmo “um pobre-diabo” moribundo ganhar autoridade, nas palavras de Benjamin. Para ele, é dessa autoridade que nascem as narrativas: desde os mitos e a grande narrativa épica, todos os narradores sempre contaram como a experiência humana não termina com a morte individual, mas continua, transmudada. O fato da morte, de certa maneira, é negado pela lembrança perpetuada pela narrativa. Com efeito, é isso mesmo que, com um enterro nababesco, querem o bicheiro e Zulmira, ao contrário do embaixador que, é claro, não precisa disso para ser lembrado. E, das várias personagens de Nelson Rodrigues marcadas pela consciência da finitude, Zulmira talvez seja a mais escrupulosa.

Zulmira ascende sob a chuva

O enterro traduz a vontade de ascensão social de Zulmira, que ganha, no filme, contornos de transcendência. Na cena mais lírica, Zulmira parece querer ascender às nuvens e unir-se às gotas de chuva; a chuva vem lavar toda sua alma e livrá-la de todas as máculas que até o momento a confinam àquela situação depauperada; seu banho de chuva é pleno de sensualidade e êxtase.

A partir de então, a morte é inexorável. Não poderíamos, assim, entender que a experiência da doença, para ela, representa uma possibilidade de libertação a ser consumada com sua morte? Sua morte não significa, para ela própria, sua dignidade e sua permanência, muito mais que mera ascensão social por meio de um enterro luxuoso? A ascensão social seria, assim, meio, e não fim. Da mesma forma, a alienação e a vontade de morrer não são “fenômenos em si em um meio degradado” (como quer Jean-Claude Bernadet), mas – ao menos para Zulmira – um meio para uma realização maior: a transcendência absoluta, tema caríssimo a Nelson Rodrigues. Na impossibilidade da transformação total da realidade social, a morte adquire sentido duplo, simultaneamente interrupção e superação do presente imediato. A única possibilidade visada por Zulmira para sair de sua condição petrificada e mesquinha (“Eu quero sair daqui! Nada de capelinha!”), para evitar o esquecimento e a aniquilação completos, é morrer e ter um enterro diferenciado. Mais: a morte revelaria sua pureza e integridade. Ao contrário da prima, que teve câncer e perdeu um seio, Zulmira não teme ser despida publicamente depois de morta (“Eu sou a morta, que pode ser despida…”), pois seu corpo não está mutilado – ao contrário do marido, o amante não lava as mãos após tocá-la e não a chama de “fria” –, ela é capaz, seu corpo é capaz de ter, de partilhar experiências.

Gabriel von Max, O anatomista, 1869

Mas, assim como muitos outros marginalizados, empobrecidos e brutalizados, Zulmira não será lembrada pelo que desejou. Seu enterro não foi luxuoso e sua lembrança passou como a de uma “vigarista”. Assim como a de muitos marginalizados, sua morte só será lembrada pelo que não foi; como muitas mulheres, nem no momento da morte ela conseguiu vencer as imposições e a indiferença do marido. O trágico revela-se, ao fim, no choro de Tuninho no estádio; o farsesco, no seu ato de jogar dinheiro às arquibancadas.

Zulmira seria totalmente esquecida após um cortejo vulgar, não fossem dois incomuns narradores a lembrar-nos de sua existência. Nelson Rodrigues conseguiu capturar, em várias de suas peças, essa apreensão intuitiva do sentido da vida que têm as pessoas comuns que, como Zulmira, vivem violentamente alijadas de si mesmas, a todo momento, no mundo todo. Leon Hirszman veio nos lembrar de que um banho de chuva sempre pode nos trazer de volta a nós mesmos.

Filosofilmar

Filosofilmar

Jean-Louis Trintignant em O Conformista, 1970, de Bernardo Bertolucci

Cordiais saudações!

Após as férias, uma reflexão filosofilmante para retomar o tempo sem publicar. Como de hábito, nada de novo sob o sol e as referências aparecem ao fim do texto. Este texto é inédito, inacabado e publico-o pela primeira vez aqui. Boa leitura e obrigado pelos comentários.

* * *

A história da relação entre filosofia e cinema pode ser escrita de muitas maneiras. Posso dizer que prefiro “estória”, ainda que digam os dicionários essa palavra não exista. O que farei doravante não é mais que apresentar superficialmente algumas linhas de aproximação.

A relação sempre foi tensa. Os filósofos nem sempre se deixaram levar pelo cinema, ou ao cinema, pacificamente. Talvez pela natureza bastante antirracional e imóvel que a plateia assume na sala de cinema, como se, ao entrar nela, entrasse na caverna de Platão. O cinema, ao contrário, sempre levou a filosofia às telas. Arrisco dizer que o cinema sempre levou a filosofia além de si.

Discussão entre um fascista e seu professor de filosofia sobre a alegoria da caverna, de Platão, em O Conformista, 1970, de Bernardo Bertolucci.

Projeções de simulacros, representações falsas do real, ou mesmo cópia da cópia imperfeita do mundo sensível, feita de imagens e pseudo-conceitos, seja lá o que for, o cinema não é a arte mais apreciada pelos filósofos, que comumente preferem a linearidade e a facilidade para a dedução do texto escrito ou as artes feitas diretamente pela mão do homem. Não podemos deixar de notar que a proximidade entre o cinema e o mito (ou alegoria) fundador da filosofia faz pensar que à filosofia, em sua busca pelo conceito, cabe o papel de desmistificar as imagens impuras do cinema. Ou então, que ao cinema cabe a função meramente apaziguadora e, portanto, secundária, de aliviar a mente após o sério e pesado exercício intelectual – assim era que Wittgenstein se dizia fã dos filmes de Carmem Miranda ou de westerns.

Henri Bergson e sua visada desconfiada ao cinematógrafo

Um marco das reflexões filosóficas sobre o cinema encontramos na obra de Henri Bergson.

Contemporâneo do nascimento da sétima arte, Bergson é o inventor de uma ideia que Gilles Deleuze tornará bastante famosa: a imagem-movimento, apresentada em seu livro Matéria e Memória, de 1896. Mas é só no quarto capítulo de A Evolução Criadora, de 1907, que a ligação com o cinema aparece. O capítulo se chama “O mecanismo cinematográfico do pensamento e a ilusão mecanicista”, e, nele, Bergson afirma categoricamente: “o mecanismo de nosso conhecimento vulgar é cinematográfico”.  Em outras palavras, o pensamento se move cinematograficamente, imagem em movimento em ação. A maneira como nosso aparato cognitivo reproduz o devir, a flexibilidade e a variedade da vida, é a mesma maneira como o cinematógrafo reproduz o movimento a partir de fotografias estáticas – criando a ilusão do movimento pela sucessão muito rápida das fotografias individuais. Nosso aparelho cognitivo, incapaz de registrar os detalhes e particularidades inumeráveis do devir, compõe artificialmente uma imagem geral em movimento, abstraída de várias outras imagens de estados particulares. Nossa percepção, nossa inteligência e nossa linguagem, assim, dão-nos ilusões, imitações imperfeitas e infiéis do devir:

“Em vez de nos prender ao devir interior das coisas, colocamo-nos fora delas para recompor o seu devir artificialmente. Temos visões quase instantâneas da realidade que passa e, como elas são características dessa realidade, basta-nos alinhá-las ao longo de um devir abstrato, uniforme, invisível, situado no fundo do aparelho do conhecimento, para imitar o que há de característico nesse mesmo devir. Percepção, intelecção, linguagem em geral procedem assim. Quer se trate de pensar o devir ou de exprimi-lo, ou até de o perceber, o que fazemos é apenas acionar uma espécie de cinematógrafo interior.” [p. 333].

Para Bergson, pensar cinematograficamente não é bom. Na verdade, a nossa única maneira de pensar capta mal o movimento do devir. Justamente por proceder cinematograficamente, troca o movimento real por um falso movimento, uma ilusão de movimento. Temos de aceitar essa nossa imperfeição: nosso pensamento cinematográfico falsifica o real.

Truman chega ao limite do mundo real criado especialmente para ele

Truman chega ao limite do mundo real criado especialmente para ele.

O juízo negativo sobre o cinema é repisado até por alguns de seus entusiastas. Levando o cinema a sério, Walter Benjamin o compreendia no contexto da perda da aura das obras de arte. “Aura” é uma noção benjaminiana para designar o conjunto de características que fazem de uma obra de arte o que ela é: o fato de ter sido feita por um artista, em dado momento histórico e social definido, dá a uma obra de arte sua originalidade, sua unicidade e sua historicidade. Uma cópia, por isso, não tem o mesmo valor. Já o cinema é produzido industrialmente, e não por um único artista. A estética cinematográfica dependeria completamente de suas condições industriais de produção e reprodução: obras de arte (re-) produzidas tecnicamente por máquinas, como quaisquer outras mercadorias, fotografias e filmes não têm a aura de uma pintura, uma escultura ou mesmo uma apresentação teatral. Por serem objetos de consumo de massa, reprodutíveis ad infinitum,perderiam o caráter de fenômeno histórico único e original das obras de arte tradicionais. Assim é que o cinema, ainda mais que a fotografia, traduziria perfeitamente a desmistificação e a reificação da realidade social moderna, jogando nas telas as imagens vivas de um mundo em que tudo é comercializável, substituível e superficial. É nessa chave que devemos entender o elogio benjaminiano a Chaplin: denunciador da alienação da classe trabalhadora, Chaplin mostraria como ninguém o lado negativo do nosso mundo, o mesmo mundo em que nasce o cinema. Uma marca negativa de nascença da qual a correta utilização política o livraria, assim como só uma revolução poderia transformar o mundo para melhor.

W. Benjamin na Biblioteca Nacional da França,1937, em foto de Giséle Freund.

Benjamin, escrevendo na década de 1930, preocupava-se com a ascensão do nazi-fascismo na Europa e com a utilização do cinema como instrumento de propaganda política. Apesar de crítico, Benjamin não evita o juízo sobre o papel secundário do cinema relativamente à política – o cinema seria um meio, certamente privilegiado, de produção e transmissão de ideologia política, mas ainda assim um meio. Sua principal tese quanto à natureza estética do cinema é a da tactilidade da imagem. Em outras palavras, a imagem cinematográfica é táctil, isto é, toca a percepção humana de uma maneira como nenhuma outra arte o faz. Pela combinação de imagem e movimento, a construção cinematográfica do espaço-tempo provoca um choque perceptivo no observador, a tal ponto que o distrai completamente, absorvendo-o. A ilusão de realidade assim atingida é incomparável. Outra aura parece surgir, uma nova fascinação nasce da exposição aliada à reprodução em massa. Por isso mesmo o cinema presta-se tão bem a usos políticos. A conclusão de Benjamin é direta: se o fascismo utiliza o cinema para estetizar a política e, com isso, produzir alienação em massa, por que é que o comunismo não faz o mesmo? Ora, Benjamin não desaprova a utilização instrumental do cinema, mas apenas a finalidade ideológica com a qual ele é utilizado. Em lugar de usar filmes para espetacularizar desfiles militares, ele defende a politização da estética. Ao contrário do fascismo, o comunismo deveria se aproveitar da peculiar estética cinematográfica para conscientizar, e não alienar as massas. Nada do que vemos na tela é real; podemos mudar ou não o real, conforme a ficção projetada nos persuadir a uma ou outra forma de conduta e pensamento.

Imagem de Olympia, 1938, de Leni Riefenstahl

Levou algum tempo para os filósofos abandonarem essa maneira de ver o cinema. Edgar Morin, por exemplo, chegou mesmo a trabalhar em cinema e ajudou a definir um gênero próprio de documentário, o cinéma-vérité, cujo marco inicial é considerado ser Crônica de um Verão, de 1961, co-realizado por Morin em parceria com Jean Rouch. Podemos citar mesmo Guy Debord, ou então Terrence Malick, que também lecionou filosofia no Massachusetts Institute of Technology. O orientador de Malick foi Stanley Cavell. Ele e Gilles Deleuze, na França, podem ser considerados pioneiros filósofos a desenvolverem uma substancial reflexão filosófica própria e específica sobre o cinema, sem inferiorizá-lo frente a formas mais tradicionais de arte e pensamento. Tanto um como outro se perguntam: o que é feito do pensamento no cinema? Qual a especificidade do pensamento cinematográfico? E, com essas perguntas, apresentam uma tese muito forte: cinema é pensamento, cinema é linguagem, sem nada dever a nenhum real exterior ou quaisquer outras formas de pensamento e linguagem.

Stanley Cavell e Gilles Deleuze filmosofando

Não vou, aqui, desenvolver uma reflexão sobre as ideias de Cavell e Deleuze sobre o cinema, inclusive porque me falta competência para tal. Quero, antes, apresentar mui resumidamente as ideias de Jean Epstein (1897-1953) e André Bazin (1918-1958). E isso pela simples razão de mostrar que pensadores do cinema também filosofam e com muita propriedade. Afinal, filosofar não é uma atividade peculiar a um profissional chamado filósofo (e, segundo o meu juízo, a profissionalização da filosofia levou a uma sua decadência atroz).

Jean Epstein

Para Jean Epstein, a máquina cinematográfica tem uma inteligência própria, ela é um verdadeiro “filósofo-robô cinematográfico”: “O cinematógrafo é um desses robôs intelectuais, ainda parciais, que, com a ajuda de dois sentidos foto e eletro-mecânicos e de uma memória registradora fotoquímica, elabora representações, quer dizer, um pensamento, no qual reconhecemos os quadros primordiais da razão” [p. 48]. Diferentemente de Walter Benjamin, que entendia a câmera como mero aparelho técnico capaz de aumentar a percepção humana, de ver o que o olho humano naturalmente não vê, Epstein chama atenção a que o cinema coloca em questão o próprio conhecimento. Não se trata apenas de servir de auxílio aos sentidos humanos; o cinema constrói percepções inéditas, novas representações, faz-nos ver o invisível, dá-nos a conhecer o que de outra maneira seria incognoscível. Mais: unindo o olho inconsciente e automaticamente passivo da câmera ao olho consciente e subjetivamente ativo do cineasta, o cinema dá corpo vivo à contradição.

Coeur-fidele

Imagem de Coeur Fidéle (1923), de Jean Epstein

Para Epstein, o cinema cria um mundo em que os tradicionais dualismos filosóficos tornam-se obsoletos (sensível/inteligível, pensamento/coisas, real/irreal, sonho/vigília etc.) e, assim, vai além da filosofia (“Le cinéma et les au-delà de Descartes” é título de um de seus artigos). Ligando espaços e tempos de maneira nova e como só ele pode fazer, o cinema desbanca uma concepção linear da história e, assim, faz nascer um novo pensamento visual, capaz de traduzir de maneira inédita a complexidade do mundo. Não à toa Deleuze dirá que Epstein, ao fazer a defesa do caráter diabólico do cinema (Le cinéma du diable, outro de seus escritos), consegue ver continuidade e mistura onde antes a filosofia só via dualismo e separação.

A filosofia do cinema dá um salto qualitativo com Jean Epstein. Com André Bazin, ela afirma definitivamente sua autonomia. E, se com Epstein temos que o cinema cria uma realidade própria, por outros meios incognoscível, com Bazin voltamos ao questionamento das relações entre o cinema e nossa realidade por meio do questionamento da realidade do cinema. Ao tentar responder sem rodeios o que é o cinema, Bazin inicia a mais filosófica das investigações cinematográficas: a ontologia do cinema.

O ponto de partida de Bazin é a fotografia. Em “Ontologia da imagem fotográfica”, de 1945, ele escreve:

“A originalidade da fotografia em relação à pintura reside, pois, na sua objetividade essencial. Tanto é que o conjunto de lentes que constitui o olho fotográfico em substituição ao olho humano denomina-se precisamente ‘objetiva’. Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo. A personalidade do fotógrafo entra em jogo somente pela escolha, pela orientação, pela pedagogia do fenômeno; por mais visível que seja na obra acabada, já não figura nela como a do pintor. Todas as artes se fundam sobre a presença do homem; unicamente na fotografia é que fruímos da sua ausência. […].

La gare Saint Lazare, Henri-Cartier Bresson, 1932

La gare Saint Lazare, Henri-Cartier Bresson, 1932

Nesta perspectiva, o cinema vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica. O filme não se contenta mais em conservar para nós o objeto lacrado no instante […]. Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a imagem da duração delas, como que uma múmia da mutação.” [pp. 13-14].

Parafraseando a tese de Bergson, Bazin confere a ela valor positivo. Para Bazin, o cinema revela o real e esse real revelado não é isento de mística, não é absolutamente objetivo. O cinema não faz somente cópia do real. O cinema não se deixa reduzir a registro documental do real, ainda que seja útil a arquivos históricos. O cinema revela o real ao participar de seu ser, de seu devir, repercutindo nele, ricocheteando nele de certa maneira, tocando “a carne e o sangue da realidade”, de maneira a nos impor uma tomada de consciência.

André Bazin e seu gato Chaplin

O modelo e o exemplo de Bazin é o cinema italiano do pós-guerra, especificamente o neo-realismo, ou, como ele prefere, alguns filmes dos diretores neo-realistas, por ele analisados magistralmente em “O realismo cinematográfico e a escola italiana da Liberação”. Em 1959, em entrevista para a revista Cahiers du Cinéma, Roberto Rossellini fez uma declaração que ficou famosa: “As coisas estão aí, por que manipulá-las?” É justamente esse ponto que interessa a Bazin. O cinema de Rossellini, De Santis, Visconti e De Sica implica uma tomada de consciência do real que produz a “imagem-fato”. Numa carta ao editor da revista Cinema Nuovo, publicada com o título “Defesa de Rossellini”, Bazin afirma que a diferença entre o artista realista tradicional (Émile Zola, por exemplo) e o neo-realista (Rossellini, especificamente) está em que o primeiro analisa a realidade e, de acordo com sua moral, reconstrói essa realidade por meio de uma síntese expressa em suas obras; o segundo, diferentemente, filtra a realidade por meio de sua consciência.O que o diretor neo-realista exprime em seus filmes, assim, é um recorte de real escolhido conscientemente. Mas essa escolha não é moral, ou estética, é ontológica, “no sentido de que a imagem da realidade que nos é restituída permanece global, da mesma maneira, se quiserem uma metáfora, que uma fotografia em preto-e-branco não é a imagem da realidade decomposta e recomposta ‘sem a cor’, mas uma verdadeira marca do real” [p. 352]. Ora, o que Bazin afinal afirma é que a imagem do cinema neo-realista é um signo do real, do tipo que foca nossa atenção fatos particulares e, com isso, metonimicamente significa o real (um signo indicial, se usarmos a terminologia de Peirce).

Ingrid Bergman em Stromboli (1950), de Roberto Rossellini

Ingrid Bergman em Stromboli (1950), de Roberto Rossellini

Eis o ponto: é justamente essa visada específica, que recorta dos fatos o que interessa ao olhar do diretor, mas sem deformá-los, que acarreta uma tomada de consciência. Chegamos a construir o sentido ao vermos passar na tela um fragmento de real após o outro, junto com outros – eis porque Bazin prefere o plano-sequência à montagem, a concatenação das imagens-fatos ao corte que produz o conflito. Há, na tela, um ganho, um a-mais de realidade. O filme ganha sentido justamente porque não pretende dar sentido ao que já se basta a si mesmo. E em cada caso, esse ganho é algo diferente: “a beleza plástica das imagens, o sentimento social, a poesia, o cômico etc.” [p. 354].

Bazin desculpa-se por falar em metáforas, “não sou filósofo”, diz ele. A importância filosófica de suas reflexões não pode, porém, ser posta em dúvida. O cinema é ser em ato, sua realidade se faz durante e a cada seu aparecimento – nenhuma aparência é desqualificada em nome de uma essência superior e oculta. Mais uma vez, caem por terra os dualismos tradicionais, borram-se as distinções entre obra e modelo e mostram-se porosas e pouco resistentes as fronteiras entre real e irreal. Eis uma costura Epstein-Bazin: “O cinema é a realidade 24 quadros por segundo”, dirá Godard.

Cineminha chinês

Que diriam Epstein e Bazin das telas de LCD, dos pixels, das imagens eletrônicas? Sua capacidade de auto-organização, que emula a de organismos biológicos vivos a partir de matrizes matemáticas, parece confirmar o que os dois autores diziam sobre a realidade cinematográfica. Parece que o cinema consegue mostrar algo que a filosofia muito tentou e pouco conseguiu demonstrar, ao menos desde que a filosofia é filosofia.

Referências

As duas obras de Bergson citadas podem ser baixadas, em francês, do sítio virtual http://classiques.uqac.ca/classiques/bergson_henri/bergson_henri.html, da Universidade do Québec em Chicoutimi.

Do mesmo sítio virtual, é possível baixar Le Cinéma du Diable, “Le monde fluide de l’écran” e L’intelligence d’une machine, de Jean Epstein: http://classiques.uqac.ca/classiques/epstein_jean/epstein_jean.html

André Bazin, em português, pode ser lido aqui: http://pt.scribd.com/doc/7095758/Bazin-Andre-O-Cinema-Ensaios

CinemaFuturo

Cordiais saudações:

O texto que ora segue foi primeiro publicado no Correio da Cidadania em 06 de Janeiro de 2010 com o título: “O futuro d(n)o cinema e o cinema n(d)o futuro”, muito melhorado agora para o mais simples que se pode ler acima. Ele já foi citado aqui no Blog, no texto sobre o Hugo Cabret [https://horizontesafins.wordpress.com/2012/06/18/hugo-cabret/].

Curiosamente, o texto volta ao passado para falar do futuro. Creio que não se trata de um texto ruim, embora não tenha ilusões quanto à sua originalidade – as reflexões do texto são bastante superficiais, como de costume, e todas de segunda-mão, como não poderia deixar de ser. Não à toa, na primeira publicação, eu recomendava como bibliografia “os trabalhos de Flávia Cesarino Costa, Arlindo Machado, Ivana Bentes e Maria Lúcia Santaella, dos quais todos os acertos e nenhum erro deste ensaio foram tirados.” Isso permanece tão verdadeiro agora como era antes.

Ora, considerando-se a exposição em homenagem a Méliès no MIS-SP, Georges Méliès: o mágico do cinema, é oportuna sua republicação. Ao menos porque, sem desconsiderar os efeitos especiais e sua importância para o cinema no pioneirismo de Méliès, chamo à atenção outros aspectos além do batido clichê – que será lido, relido, treslido no populacho mediático, mas não só – de “pai dos efeitos especiais”, “inventor” ou “mágico” das “trucagens” cinematográficas. Como digo no final do texto, o cinema sempre buscou transformar o ilusório em real – e, particularmente, eu creio que sempre conseguiu, sem entrar no mérito da qualidade de uma ou outra realização. A realidade da ilusão é constitutiva do cinema, mostrando como as divisões entre uma e outra podem ser porosas, fluidas e mais difíceis de discernir do que gostaríamos. Ao enfatizar o que as imagens de Méliès veiculam ou dão a pensar, busco fugir a certo lugar-comum muito discutido para sugerir outras indagações menos difundidas (embora, talvez, igualmente comuns). Se fui bem-sucedido, só o leitor poderá julgar.

* * *

O futuro sempre foi um tema caro ao cinema. Ao longo do século XX, muitas representações do futuro passaram pelas telas. Também, pudera. Quando, em 28 de dezembro de 1895, os irmãos Lumière realizaram a hoje histórica sessão de projeção com seu cinematógrafo, a Europa se embebedava de futuro – a prosperidade econômica e as invenções e descobertas científico-tecnológicas acumuladas durante os séculos precedentes culminariam, dali a cinco anos, na maior glorificação do progresso da ciência e da civilização européias conhecidas até então: a Exposição Universal de Paris de 1900.

Luz elétrica, industrialização, urbanismo racionalizado, novas engenharias, teorias e disciplinas científicas e, oras bolas, por que não?!, novas formas de se fazer arte – a fotografia e, logo depois, ainda mais que a fotografia, o cinema. Não à toa, alguns dos primeiros filmes dos irmãos Lumière buscam justamente documentar o corre-corre cotidiano nas grandes cidades e as marcas tecnológicas da modernidade: a locomotiva, os bondes elétricos, a saída de uma fábrica, a torre Eiffel destacando-se na paisagem parisiense.

A torre Eiffel à noite, durante a exposição de 1900, em foto de William Hermand Rau.

O próprio cinematógrafo, aliás, é apresentado primeiramente em feiras e exposições como uma curiosidade científica, muito antes de adquirir status de arte.

Nesse contexto, o filme Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune, França, 1902), de Georges Méliès, merece novamente ser destacado. O leitor poderá se perguntar: por que voltar mais uma vez a um filme e a um realizador sobre os quais tudo parece já ter sido dito? Por que insistir de novo na mesma velha história do cinema, da modernidade? Poderíamos simplesmente justificar essa opção citando o poeta: há velhos que são novíssimos… E podemos também dizer o seguinte: pensar as representações do futuro construídas na história do cinema nos permite pensar melhor o futuro do cinema. Dessa perspectiva, o filme de Méliès é um testemunho único de como aquela época concebia seu futuro – “o progresso da ciência logo nos levará à Lua”. Por isso, nunca perderá interesse. Daí podermos indicar ao menos dois aspectos dele merecedores de atenção e não exatamente antiquados.

Primeiro: O contraste entre a representação dos terráqueos e a dos alienígenas é deveras instigante. Na verdade, o filme começa com a preparação da viagem, na Terra. Nesse momento, o filme parece evocar o passado: o grande telescópio apontado para o céu pela janela de um castelo, os globos, as roupas que fazem os astrônomos se parecerem mais com o mago Merlin do que com verdadeiros cientistas, junto com a narração que os nomeia: Alcofribas, Nostradamus, Micrômegas… Após discussões e uma briga, decidem finalmente ir à Lua; trocam, então, de roupa – deixam de lado os trajes de cientistas e vestem roupas mais “modernas” –, chegam à Lua todos bem vestidos segundo o código de etiqueta da época; terno, gravata, polainas e guarda-chuvas (peça importante, não só para o vestuário, como se verá). Suas roupas indicam que, embora um pouco excêntricos, são homens civilizados – são representados, agora, de maneira a parecerem familiares e “normais” aos observadores da época. Essa representação, mesclando científico com fictício-literário, marca de maneira muito clara dois estereótipos com os quais o cinema no século XX se acostumará: o cientista “maluco” e a identificação de “civilização” com “progresso científico”. Note-se: não há jovens entre os cientistas.

Doutos científicos em reunião

Tanto mais interessante tudo isso se torna quando chegam ao seu destino. Tripulando uma nave – um foguete – que mais se parece com uma bala – lançada, com pompa militar, de um canhão – atingem em cheio o olho direito da Lua! O ambiente lunar parece, à primeira vista, inóspito; logo, revela-se maravilhoso. Um dos cientistas planta o guarda-chuva no solo, para compará-lo a um cogumelo gigante; o próprio guarda-chuva se transforma em cogumelo e começa a crescer gigantescamente! Ao contrário dos terráqueos, os selenitas, ou habitantes da Lua, são representados de modo a parecerem hominídeos primitivos, muito mais próximos do homo sapiens do que dos tripulantes – na verdade, são meio monstros, meio homens. Pulando como animais, fazendo contorcionismos, mostram-se ameaçadores e são destruídos a golpes de guarda-chuva – atingidos, explodem! No entanto, multiplicam-se, aparecem muitos outros como do nada, que prendem os astrônomos e os levam à presença do rei dos selenitas. No palácio, os astrônomos-tripulantes explodem também o rei dos selenitas e conseguem fugir de volta à Terra, perseguidos pelo exército selenita e sempre se defendendo com o guarda-chuva. Moral da história: a diferença é representada de maneira primitiva e indomável pela racionalidade científica. Hoje, é difícil não ver nessa representação dos alienígenas algo de atrasado. Além disso, são os vilões da história; se quisermos sobreviver, cabe destruí-los…

Terráqueos na corte selenita

Segundo: a tecnologia usada para contar a história. Por mais que quisesse, Júlio Verne jamais conseguiria o que Georges Méliès conseguiu. O efeito insólito, unindo estranhamento a comicidade, tensão dramática e velocidade narrativa, só pode ser conseguido daquela maneira por causa das possibilidades expressivas trazidas pelo cinema.

Os efeitos óticos, as aparições e desaparições súbitas, os cortes, os deslocamentos e movimentos da imagem, as formas e conteúdos narrativos e estéticos possibilitados pela tecnologia do cinema à mão de Méliès deram-lhe a oportunidade de realizar uma obra-prima de inventividade para os padrões da época: os efeitos, truques e ilusões óticas de Viagem à Lua são impossíveis de se realizar ao vivo, por exemplo, no palco de um teatro – como transformar um guarda-chuva em um cogumelo gigante? Parece mesmo que, a Méliès, pouco interessa o que se conta, o enredo, a história em si; antes, mais importantes são os efeitos especiais, aos quais a narração parece servir de mero aporte.

De fato, sabe-se que o cinema possibilitou a representação de novas relações espaço-temporais, modificando, com isso, nossa humana percepção sensorial de espaço e tempo. Isso levou Walter Benjamin, em famoso ensaio, a ver no cinema a aurora de uma renovação revolucionária para a arte, desde que usada politicamente para os fins corretos (Benjamin temia o efeito contrário, perpetrado pelo nazi-fascismo, de estetização da política. Parece que os espetáculos eleitoreiros a que assistimos atualmente confirmam seus temores…).

Hoje, 100 anos e quase um lustro depois da primeira exibição dos irmãos Lumière, toda a tecnologia do cinema mudou. As imagens que vemos em movimento não são mais impressões luminosas gravadas em películas fotossensíveis. De fato, o sistema cinema-celulóide já há algum tempo se tornou ultrapassado. As imagens de hoje em dia são construções digitais, efeitos da combinação de algoritmos, projetadas em 3D em telas IMAX (que, relativamente, poucos já conhecem).

Osa Johnson, fotógrafa estadunidense, observada por mulheres Masai, em algum ano da década de 1930

No passado, a técnica de impressão fotossensível das imagens favoreceu a idéia de documentação do real – “vejam, aqui está, o real gravou sua impressão nesta chapa” – e Méliès construía representações altamente fantasiosas de um futuro talvez nem tão fantasioso: a civilização escorraçada de seu suposto novo Éden, pelo seu duplo temido e diferente – o selvagem, o primitivo, o estranho.

Atualmente, o modo de produção digital das imagens pouco ou nada tem a ver com semelhança física, contigüidade, relação indicial etc. entre o objeto e sua representação. As imagens digitais constroem seu objeto de dentro de si mesmas, ao mesmo tempo em que se auto-constroem, como se em uma autopoiese. O próprio espaço e o próprio tempo são auto-criados no mesmo processo, borrando as fronteiras entre o inorgânico e o orgânico, já que emulam a capacidade auto-criativa e organizada de processos biológicos.

A self-organizing system displaying emergent properties, de Manny Llorenzo, foto digital, 2009

Essa nova tecnologia abre muitas portas ao futuro do cinema. Embora ainda incipiente, esse domínio emergente do cinema digital já apresenta algumas características decisivas. Uma delas é sua expansão. As tecnologias dos jogos de computador e a Internet apontam para um cinema de ambientes “virtuais” múltiplos em que as pessoas se tornam protagonistas em um conjunto variegado de deslocamentos narrativos. Além disso, essas mesmas novas tecnologias digitais já apontam para um cinema que se constitui como um espaço narrativo imersivo, no qual o observador também pode assumir a função de editor e operador de câmera.

O domínio digital é distinguido, sobretudo, por seu amplo espectro de novas modalidades de interação, transformando-se assim em espaço social. É claro que o cinema e todas as outras formas de arte sempre foram interativos, na medida em que envolvem apreensão e interpretação. Mas a interatividade digital oferece uma nova dimensão para o controle e o envolvimento direto do usuário nos processos criativos. Isso sem falar nas conseqüências para o sistema de distribuição de cópias e de codificação por regiões usada nos DVD’s, que já se tornou um sistema obsoleto, mantido unicamente por interesses comerciais, já que o cinema digital põe como instantânea a convergência entre computador, televisão, Internet e a experiência de desterritorialização e reterritorialização de emoções e conhecimentos em vários lugares.

Desde o Cinerama, passando pelas exibições circenses de cinema de 180 graus, até o 3D e o Omnimax, o cinema busca hiper-potencializar a sensação de realidade espacial de suas ficções. Assim como em muitas formas de arte, o objetivo é ligar a experiência do observador a um lugar que induz a uma totalidade de envolvimento no constructo estético e conceitual da obra – um ideal que remonta à noção de obra de arte total de Wagner e seu projeto para o teatro de Bayreuth. Hoje em dia, mais do que situar o observador em relação a um espetáculo grandioso que o esmague e diminua, é possível o seu deslocamento para uma posição singular de relação crítica para com a representação. Por exemplo, a projeção de imagens em prédios públicos estende as experiências culturais para constituir outros níveis de imersão.

Bastam esses apontamentos, necessariamente rápidos e insuficientes, para entendermos que o futuro do cinema continua incerto. E, apesar da crescente dominação econômica dos fabricantes de hardware e da distribuição e produção de tecnologia pelos grandes estúdios, as possibilidades de utilização permanecem em larga medida indefinidas. Que será do cinema, como arte, como linguagem e como pensamento daqui em diante é uma pergunta para a qual ainda não temos resposta. Assim como Méliès, temos de construir nosso futuro – não sem imaginação e fantasia.

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Às pessoas persistentes até aqui, brindes. Em primeiro lugar, a versão colorida à mão de Viagem à Lua, conforme a mais recente restauração das cores:

Segundo, aquela que é considerada a outra obra-prima de Méliès, Voyage à travers l’impossible:

Vemos aqui claramente como o propósito não é mais meramente estimular a visão, mas contar uma história, construir uma narrativa, com os meios de que dispõe o cinema, fazendo uma contraparte interessantíssima a  Viagem à Lua. Ainda, o veículo usado para ir ao Sol e ao fundo do mar é um trem – o veículo da modernidade; da liberdade de ir a qualquer lugar em pouco tempo, a qualquer tempo; o veículo dos irmãos Lumière.

Uma reflexão de última hora. Se a fotografia do final do século XIX e começo do XX foi considerada particularmente adequada para registrar o “primitivo”, será a imagem digital atual a mais adequada para emular o “orgânico”? Parece haver uma vontade de orgânico nas imagens digitais contemporâneas, uma vontade de interação, muito mais que organicidade e interação efetivas. Pensemos num filme como os Transformers (fiquemos com o filme de 2007, mas qualquer outro poderia servir, exceto o desenho animado de 1986. Alguns trailers podem ser vistos no IMDb: http://www.cinemagia.ro/filme/transformers-transformers-razboiul-lor-in-lumea-noastra-12425/). A imagem independe do real – não é um efeito luminoso sobre um suporte físico que produz a imagem, mas tão-só a combinação dos pixels, as matrizes matemáticas, digamos assim. Isso possibilita a produção de imagens que nada tem a ver com realidade alguma, a não ser as suas próprias. A sugestão de que as máquinas têm vida e comportam-se organicamente, inclusive de maneira não determinista, é muito forte. Assim, breve e grosseiramente, podemos pensar que as máquinas são os organismos e a autonomia das imagens relativamente a qualquer coisa extrínseca a elas é total. Ou, melhor dizendo, não há extrínseco, tudo é imagem, tudo é orgânico, mesmo que não o seja. Ao menos, as divisas e fronteiras são porosas e inexatas. Pontos a pensar mais.

Hugo Cabret se recusa a não sonhar

Cordiais saudações:

As mensagens dos amigos me convenceram a republicar aqui este texto sobre o Hugo Cabret de Scorcese (ele apareceu dividido em duas partes no Correio da Cidadania: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6961 e http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7036 ). Uma mensagem da Renata M.O. me alertou sobre o percurso do garoto em busca do pai – sim, eu não escrevi sobre a relação dele com o mundo ordenado cheio de buracos e engrenagens soltas do ponto de vista psicanalítico. Há mais pessoas para fazer isso e melhor do que o conseguiria. Além de ser impossível dar conta de tudo, toda obra é inesgotável vista de fora. Por enquanto, pouco mais tenho a dizer sobre o filme, que ainda me está muito vivo na memória. Ao final de cada texto, lá na página do Correio, os eventuais curiosos verão que assinei como sonhador que não quer se tornar autômato. Embora esteja cada vez mais difícil, ainda mantenho o desejo. Espero que os leitores também compartilhem do mesmo e vejam o filme com olhos infantis e sonhadores.

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A vida só é possível
reinventada.

Reinvenção, Cecília Meireles.

É frequente a associação do cinema com o sonho. A associação mais primária é imediata: o espectador, na sala escura, sentindo-se isolado do mundo, é convidado pelas imagens em movimento a participar com certo distanciamento das ações e acontecimentos, sem controle racional sobre eles. Ao sair da sala, é como se saísse de um sonho.

            Essa associação da sala escura do cinema com o universo onírico no qual a realidade está como em suspensão ressalta tanto mais quanto lembrarmos que, no mundo real, o controle racional sobre os acontecimentos é uma característica indelével das sociedades contemporâneas. E o cinema, arte industrial e tecnológica por excelência, nasce justamente na época em que o ideal de um controle racional absoluto sobre mundo se instaura definitivamente. A saída da sala de cinema pode ser muito frustrante – saímos do sonho e voltamos ao mundo em que temos de ser racionais a todo custo, em que jamais podemos sonhar, em que temos de agir como máquinas, sempre com um propósito, sempre prontos para nossas obrigações, sempre alertas e conscientes. Em A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, EUA, 2011), mais recente filme de Martin Scorcese, esse contraste é tratado magistralmente (o uso da tecnologia 3D no filme é decisivo, mas isso fica para o próximo artigo).

Hugo (Asa Butterfield) é um órfão que vive escondido na estação central de trens em Paris, na década de 1930. Por ter aprendido a consertar máquinas e relógios com seu pai e seu tio, ele mantém os relógios da estação pontuais, como forma de se manter em segredo. E dos buracos dos relógios e por trás das paredes, ele observa os acontecimentos na estação, como um espectador de cinema em posição de voyeur privilegiado. Hugo guarda um boneco mecânico, um autômato, como única herança de seu pai, e passa boa parte do filme tentando consertá-lo, ao mesmo tempo em que foge do guarda da estação (Sasha Baron Cohen). Em busca da última peça faltante para fazer o autômato funcionar, uma chave em forma de coração, ele se envolve com a menina Isabelle (Chloë Grace Moretz), afilhada do dono de uma loja de brinquedos na estação. Trata-se na verdade de George Méliès (Ben Kingsley), o pioneiro do cinema, autor de Viagem à Lua (filme já comentado por este escritor, aqui: < http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4200:cassiano060110&catid=60:cassiano-terra-rodrigues&Itemid=130>; o filme mesmo pode ser visto aqui: Viagem à Lua, Georges Méliès e tantos outros filmes fantasiosos e oníricos. Hugo acaba descobrindo uma surpreendente ligação entre Méliès e o autômato, e, ao mesmo tempo, a chance de uma nova vida.

A começar pelo autômato: obra de mãos humanas, uma máquina com forma humana, capaz de desempenhar tarefas determinadas pelo artesão seu criador, essa criatura mecânica parece fundir perfeitamente teoria e prática. Se, por um lado, a criação de autômatos sugere a proximidade das capacidades produtivas humanas com a criatividade onipotente divina, também parecem sugerir, por outro, que as sementes da destruição são plantadas pela mesma mão criadora humana. A primeira coisa que um autômato evidencia é a relação – ambígua, de distanciamento e proximidade – entre seres humanos e máquinas. Um autômato corporifica a ideia de controle racional absoluto sobre o real ao concretizar um ideal de perfeição, objetividade e infalibilidade almejado. Por isso mesmo, evidencia nossa natureza imperfeita, subjetiva e falível, nossa frágil e inevitável condição propensa ao erro e à degradação – uma máquina não erra, age sempre conforme projetada, a não ser por falha mecânica, ao contrário de nós, humanos. Uma máquina com forma humana talvez signifique, mais que quaisquer outras, nossa confiança em e nossa desconfiança de nós mesmos, nossa crença no uso do conhecimento técnico para moldar o mundo à nossa imagem e para nossos fins, ainda que não saibamos bem quais são esses fins. Essa confiança hesitante nos poderes da razão técnica é figurada por Méliès que, no filme, tem algo de futurista: ele confia na técnica, mas a usa para construir cinematograficamente um mundo poético de ilusão e fantasia.

A ação do filme decorre na década de 1930. É nessa época que o fascismo, o nazismo e o stalinismo começam sua ascensão que culminará, catastroficamente, na IIª Guerra Mundial e numa visão técnica do mundo que reduz a humanidade à condição de máquinas.

Sartre associa essa visão técnica do mundo à ideia de que o ser humano é criado, do nada, por um deus que é como um grande artífice. É assim que a produção precede a existência – cada ser humano tem sua vida determinada conforme um propósito e um plano prévio antes mesmo de existir, e seria como um objeto, que tem sua essência definida pelo artífice antes de ser produzido. No fim das contas, isso significa renegar a liberdade de autodeterminação ao ser humano, contradizer a capacidade humana de construir a própria história, de inventar e modificar a própria existência. Daí que Sartre defenda um existencialismo ateu e humanista, afirmando: a condição humana é tal que a existência precede a essência, ou seja, o homem não é mais do que ele faz – ele existe, está jogado no mundo, propenso ao futuro, único responsável por si e por seus atos, um projeto que se vive subjetivamente antes de qualquer outra coisa. Não há, portanto, essência humana, há o que nós fazemos de nós mesmos. Para o bem e para o mal, somos responsáveis por nós mesmos.

1930. Após a Iª Guerra Mundial, após o crack da bolsa de Nova Iorque, Méliès perde a confiança no próprio trabalho. Os rumos que o cinema tomou não deixam lugar para seus filmes malucos e ele acredita que tudo está acabado e definido, tudo está determinado e não adianta mais tentar. A manipulação técnica total do mundo já está consumada e a destruição do sonho é só uma consequência lógica inevitável a quem, num ato de desespero, aceita o fracasso e se recusa a enlouquecer. Méliès queima suas “nuvens” – estúdio, fantasias, rolos de filme, tudo – como se tudo isso fosse ruim e tivesse de ser destruído! Diante da guerra e da experiência de aniquilamento do sonho, da fantasia e da imaginação, diante da história de seu próprio fracasso, Méliès, o homem que usara a técnica para dar vida à imaginação criativa, tinha de destruir tudo o que possuía.

A técnica mostrou-se destruidora, e a fascinação futurista com uma época de progresso técnico contínuo reduziu-se a cinzas. Ora, ao contrário do que pensavam os futuristas, a guerra instaura uma ruptura temporal absoluta; como diz Walter Benjamin: “Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.” A perda e o empobrecimento da experiência social, causados pela guerra, o completo esvaziamento do sentido da vida, vemos nos atos de Méliès: mesmo sem ter ido à guerra, sente-se destruído internamente por ela e emudece.

Novamente uma formulação de Walter Benjamin sintetiza perfeitamente as razões da verdadeira delenda Carthago operada por Méliès: “Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes.”

Hugo não acredita em nada disso. Hugo jamais se rende ao pensamento de que tudo está determinado e acabado. Se o autômato está quebrado, vou consertá-lo; se a chave caiu na linha do trem, arrisco-me, mas vou pegá-la; se perdi meu pai, nem por isso perdi as esperanças; se a polícia me prendeu, não significa que preciso me render ao poder disciplinador (aliás, representado comicamente como o outro lado do desejo reprimido e mutilado). Para Hugo, sempre há uma esperança, sempre há algo que ainda não foi definido, sempre há um espaço por onde se escapar, sempre se pode reutilizar o que fora descartado, sempre se pode criar, inovar, renovar. E são as crianças que representam a esperança de renovação do uso da técnica pela imaginação e pelos sentidos, não mais só pelo uso racional. Hugo finalmente conserta o autômato, com a ajuda, agora, de sua amiga Isabelle (Chloë Grace Moretz), afilhada de Méliès e aficionada por literatura. Ela, a própria imaginação literária, ávida por aventuras tais quais lê nos livros de Dumas, Verne e Carroll, como a querer confundir realidade e ficção; ele, o cinéfilo apaixonado, exímio técnico em busca de uma vida real. Não podemos deixar de lembrar que Hugo apresenta o cinema a Isabelle, e, com isso, chama-a à realidade! Juntos, dão novo sentido aos mesmos elementos que Méliès relegava ao esquecimento, dando vida nova aos sonhos.

Agora que os filmes estão disponíveis na Internet, e, como nunca antes, em tanta quantidade e quase gratuitamente, é inevitável tirar de A Invenção de Hugo Cabret a pergunta: que faremos com toda essa memória agora reconduzida à luz? Que novos sonhos sonharemos? Ou então, em tempos de questionamento da legitimidade dessa recondução, não deveríamos nos perguntar – que podemos fazer para continuar a sonhar?

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Já lançamos uma sugestão sobre a relação entre Hugo e Méliès: Hugo quebra a própria lógica da personagem Méliès, transformando radicalmente a sua vida e a própria. Não é fortuita a alusão à literatura no filme. É a partir do encontro com a jovem Isabelle que a literatura entra na vida de Hugo. E ele se torna protagonista de fato apenas depois de ganhar o presente do bibliotecário: Robin Hood, o proscrito, de Alexandre Dumas.  Tal qual Robin Hood, ele é também um proscrito; tal qual Robin Hood, ele também perdeu o pai – e embora não o reencontre, pode-se dizer que recupera alguma figura paterna. Mas o mais interessante é que, assim como Robin, Hugo se opõe a um poder policial violento e impassível.  Isso os aproxima, Robin e Hugo: ambos são proscritos, ambos são rebeldes, ambos vivem escondidos, cada um em sua floresta.

A floresta de Hugo não é de madeira, mas de ferro, engrenagens, molas, parafusos e pinos. Após a morte do pai e do tio, Hugo se torna responsável pelo andamento dos relógios da estação: mantém todos funcionando regularmente, em ponto, como forma de se manter escondido. No filme, a relação entre tempo e ação é fortemente marcada: todos giram em torno de relógios, o ponto de encontro é o próprio relógio central da estação.

É uma consequência definidora da modernidade que a invenção do relógio mecânico implique a separação entre tempo e espaço. Para Anthony Giddens, a invenção de um tempo mecânico, abstrato, desvinculado de marcos geográficos, significa imediatamente maior padronização na mensuração do tempo mundial e, por conseguinte, maior controle sobre o espaço e as ações que se dão nele. Ora, nas sociedades pré-modernas – numa cidade medieval, por exemplo – a coincidência entre tempo e lugar é importantíssima: a época das chuvas determina a época do plantio e da colheita, influindo decisivamente no aspecto físico do espaço, e, fundamentalmente, nas ações das pessoas, que agem segundo uma cronologia cujo controle não detêm. O advento do relógio mecânico permite outras relações: é possível cronometrar e fazer concordar os horários de partida e chegada de um trem, por exemplo, em lugares muito distantes. Isso tem duplo resultado: maior possibilidade de racionalização – e, por conseguinte, de maior controle sobre os lugares – e um esvaziamento do tempo e do espaço: “os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza.” (As consequências da modernidade). Que lugar melhor do que uma estação de trem para exemplificar esse fenômeno? De fato, como diz Giddens, uma tabela de horários numa estação é, na verdade, um dispositivo de ordenação espaço-temporal que indica quando e onde chegam os trens. E que melhor descrição da situação de Hugo poderia ser dada? Sempre ausente, ele controla o tempo da estação; invisível, ele mantém o fluxo de passagens, encontros e desencontros sob vigília constante, ele mesmo correndo o risco de ser descoberto a qualquer instante pelo policial vigilante (Sacha Baron Cohen). Vigilante, mas nem por isso detentor de algum controle; mal se controla a si mesmo diante da florista…

Como pano de fundo, Paris, a cidade normalizadora por excelência.

Década de 1930, ascensão dos totalitarismos e da visão técnica do mundo. As personagens na estação carregam as marcas da Primeira Guerra Mundial – a guerra, ruptura temporal absoluta: “Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.” (Walter Benjamin, O Narrador). O menino conserta o tempo, e uma das suas aflições é justamente perder o tempo; o tempo salva o menino, Robin Hood moderno agarrado não a um galho, mas ao ponteiro dos minutos – como Harold Lloyd em Safety Last! (dir. Fred C. Newmeyer, Sam Taylor, E.U.A., 1923: Harold Lloyd em Safety Last!). Algumas outras, dentre as tantas homenagens do filme, parecem irrupções desorganizadoras do espaço-tempo racionalizado e abstrato da modernidade: a homenagem aos irmãos Lumière, o trem que invade e destrói a estação; como a suspender o tempo da ação, desorganizando o espaço da gare, o garoto perseguido pela polícia, homenagem a Chaplin; e, a principal homenagem, a Méliès, cineasta da fantasia, do intemporal, do irracional em todos os lugares. Ao contar a vida de Méliès, o filme é historicamente muito exato: ele de fato foi mágico, de fato sua mulher era sua musa nos filmes, de fato abandonou a carreira, de fato abriu uma loja de brinquedos na Gare de Paris, e de fato retornou após muitos anos, redescoberto pelos estudiosos de cinema na década de 1930.

Um aspecto (certamente não o único) muito importante da obra de Méliès é seu experimentalismo técnico: cortes, sobreposições de imagens, efeitos de cor pintados à mão em cada fotograma de filme para criar ilusões e truques óticos, Méliès tudo experimentou. Sua obra, assim, dá um testemunho único sobre a relação entre o cinema e a técnica: foram os desafios expressivos que levaram, muitas vezes, às inovações técnicas, ou fizeram com que a técnica já existente fosse usada de maneira criativa. Assim, um uso leva a outros, novos problemas e outras incorporações de outros meios surgem, nascem novos desafios de criatividade. (Vejamos este divertidíssimo filme seu:

O Alquimista Parafaragamus, 1906).

Ora, uma das virtudes do filme está no uso que faz dos recursos tecnológicos. Por exemplo, a exatidão em que ressaltam silêncio e música como auxílio à narrativa, para exprimir os estados da alma das personagens, criar o suspense, para engendrar mesmo a ação. E, é claro, principalmente, o 3D: se o tema da construção de um espaço ideal pelo enquadramento da câmera já fora teorizado desde os primórdios do cinema, agora, com o 3D, o uso da tecnologia aumenta a sensação de imersão do observador no próprio filme, como se o observador estivesse mesmo dentro do sonho cinematográfico, um acréscimo significativo à metalinguagem já presente no enredo.  A experiência da imersão é potencializada em tal grau que a experiência do observador de entrar no e sair do quadro acontece como antes não era possível – não se trata mais de um espectador meramente voyeur, mas de um espectador que está ali, no meio da ação, uma personagem do sonho das personagens. Tudo, enfim, se dá em função do enquadramento – até mesmo a experiência das pessoas na sala do cinema. Mas o observador não está mais numa posição de contemplação homogênea da ação. Não apenas testemunha, ele pode se perceber como partícipe de um espaço-tempo não-linearmente coerente, fruto de uma tecnologia avançada de projeção de imagens, entrecortado por ações abruptas e simultâneas.

Isabelle: “Are you sure about this? We could get into trouble.” Hugo: “That’s how you know it’s an adventure!”

Eis a lição de Hugo: é preciso saber dar novo uso a nossas técnicas.  Entre fins do século XIX e inícios do XX, Charles S. Peirce afirmava que toda ciência se define por seu problema: são as questões práticas que busca responder e os problemas efetivos que tenta solucionar que a definem. Ciência, portanto, não é algo puramente teórico e desligado do mundo, mas fundamentalmente uma atividade que busca descobrir soluções para problemas que surgem da prática. Isso não significa reduzir a ciência à mera busca de soluções imediatas; o interesse primordial da investigação científica, para Peirce, está na descoberta do novo, do desconhecido. Isso significa, sim, que não faz sentido separar rigidamente conhecimento teórico de conhecimento prático – todo conhecimento busca inferir, com base na maneira como as coisas se apresentam, como é possível agir e o que é possível esperar – e agir como antes não se concebia, esperar o que antes desconhecíamos. E mais: problemas e questões práticas só são efetivamente superados por um esforço coletivo de organização e conexão de diferentes investigações e métodos. O conhecimento, portanto, é uma construção coletiva. Não são Isabelle e Hugo que, juntos, descobrem o segredo de Méliès? Não são eles, unidos a Mama Jeanne (Helen McCrory), que conseguem tirar Méliès de seu esconderijo? E não são eles, as crianças, que perguntam: como poderemos aprender, se não tivermos onde nos apoiar? Poderemos sonhar, se não tivermos de que lembrar? Novamente, Peirce: fazer ciência é sonhar os sonhos mais selvagens.

Wild dreams of science through Peirce’s head

Adversário ferrenho de todo e qualquer determinismo, Peirce combateu a ideia da natureza como uma grande máquina, na qual tudo funciona perfeitamente, segundo o princípio absoluto de que “todo efeito tem uma causa”. Esse mecanicismo significaria retirar toda possibilidade de mudança e criatividade do mundo. Vida e liberdade não pertenceriam à natureza, mas seriam como dádivas divinas de um Deus ex machina, um ente divino benevolente e apartado de todo o universo, um criador inteiramente diferente de sua criatura. A alternativa, para Peirce, está na hipótese da conaturalidade afetiva entre mente e matéria: mente e matéria compõem a mesma natureza, são conaturais, afeiçoam-se e afetam-se mútua e continuamente, desde a origem – porque seria diferente agora? Ora, não há finalidades pré-determinadas que não possam ser modificadas ao longo do tempo – o afeto é capaz de criar desvios, mudanças e novos ciclos na natureza.

Dessa perspectiva, podemos entender que Hugo, ao afirmar que “tudo tem um propósito”, não afirma um determinismo absoluto; na verdade, ele se relaciona com o autômato de maneira totalmente diferente. Primeiro, não é seu criador onisciente e onipotente, é mais seu co-autor, ajudando a consertá-lo; segundo, Hugo deposita no autômato expectativas que fazem-no identificá-lo afetivamente um pouco consigo mesmo – ao lutar para restituí-lo a seu criador original, Méliès, ele promove, na verdade, uma ressignificação das relações afetivas – até mesmo do policial que o persegue o filme todo. Se, de um lado, consegue compensar a perda do pai ao se reinserir numa família, de outro, ele consegue mostrar ao inventor da máquina novas possibilidades: a finalidade pré-determinada da máquina é apenas uma dentre muitas possíveis – o afeto pode originar fins imprevistos. Não é desprezível que a semelhança entre o autômato e seu criador seja justamente a capacidade de desenhar! Hugo sonha um sonho terrível – teme tornar-se máquina e não ser mais capaz de mudar a própria vida, não poder mais amar – ao qual opõe um sonho selvagem – sonha para si uma vida longe do tempo racionalizado das obrigações de um relógio que ele não pode ver.

O autômato de A Invenção de Hugo Cabret mostra que até as máquinas podem ganhar vida – uma brincadeira do filme é que nós, observadores-participantes, esperamos o tempo todo pelo momento da humanização do autômato, ao contrário das personagens do próprio filme – e tememos o momento da mecanização absoluta e arrasadora da humanidade. O filme não nos decepciona, e o que vemos nele, o que vivemos nele, mais que a possibilidade de humanização das máquinas, é a própria humanização dos humanos.

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VENDENDO O PEIXE: Este que vos escreve pede perdão pela autopropaganda, mas não se furta a divulgar a própria criação. O curso de extensão “Diálogos entre Filosofia, Cinema e Humanidades: o Cinema como Construção do Conhecimento” acontece aos sábados, na PUC-SP, das 9h00 ao meio-dia. Mais infos na página <https://horizontesafins.wordpress.com/cursos-e-palestras/>.

BIBLIOGRAFIA: Alguns dos textos que menciono estão disponíveis na Internet:  “O existencialismo é um humanismo”, de Sartre; e “O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin. Qual não foi minha surpresa ao ver que o livro de Anthony Giddens também está disponível aqui: As consequências da modernidade. De Charles Sanders Peirce, em português, só se consegue na Internet a coletânea intitulada Semiótica, da editora Perspectiva: Semiótica – col. Estudos. Uma versão do  segundo livro de Alexandre Dumas para Robin Hood pode ser encontrada aqui: Robin Hood, o proscrito. Há um hotsite para The invention of Hugo Cabret, de Brian Selznick: <http://www.theinventionofhugocabret.com/index.htm>, que já foi traduzido para o português, por Marcos Bagno, pelas Edições SM. O primeiro capítulo pode ser lido aqui.